segunda-feira, 28 de julho de 2025

NHOZINHO: O POETA DA ESCULTURA

 Novos artigos de segunda #42

Fonte da Imagem: Arquivo do autor


NHOZINHO: O POETA DA ESCULTURA

José Neres

 

            Geralmente ficamos tão maravilhados com a aparente grandeza das coisas que não percebemos que há beleza também em detalhes às vezes imperceptíveis para os olhos de quem se acostumou a fixar-se apenas no que parece gigantescamente deslumbrante. Da mesma forma, servimos como caixa de ressonância a nomes nacional ou mundialmente conhecidos e silenciamos (ou nem mesmo conhecemos) os valores artísticos e culturais de nossa própria terra.

            Talvez por conta desse incômodo silêncio a respeito dos talentos locais, o nome de Antônio Bruno Pinto Nogueira, mais conhecido como Nhozinho, seja pouco lembrado, embora figure entre os mais originais e importantes escultores da arte brasileira do século XX.

            Nascido em Cururupu, no dia 17 de maio de 1904, Nhozinho, desde a infância, demonstrou inclinação para as artes que exigiam atenção, perícia, precisão e habilidade manuais.  Mal começava a entrar na adolescência, porém, começou a lutar contra uma doença degenerativa que deixaria seus membros superiores e inferiores deformados e que, posteriormente, após a amputação de ambas as pernas, iria condená-lo a locomover-se em um carrinho de madeira por ele mesmo projetado e construído, mas que atendia às suas necessidades. Para completar seu rol de provações, o artista ainda perdeu a visão do olho direito.

            Mas essas tantas dificuldades não impediram Antônio Bruno de produzir uma obra ímpar na história do artesanato brasileiro. Na verdade, parece que as extremas dificuldades serviram como impulso para que o artista maranhense se superasse e evoluísse em seus trabalhos, deixando de ser apenas mais um artesão habilidoso e impregnando suas obras de motivos e temas da vida social e folclórica maranhense; saindo também do estaticismo das peças para imprimir ideia de movimento a suas criações.

            Dono de um estilo em que o minimalismo na escolha do tamanho das peças contrastava com a profusão de detalhes, Nhozinho notabilizou-se também por registrar os tipos regionais, em uma busca de reproduzir elementos representativos de seu povo e de sua época. Observando-se atentamente as obras desse artista, muitas vezes com a necessidade de uma lente de aumento, é possível perceber a riqueza de detalhes e o desejo dele em eternizar em suas peças detalhes que passavam despercebidos. De alguma forma, guardadas as proporções e respeitados os estilos, pode-se dizer que Nhozinho registrou e esculpiu em buriti e outros suportes o dia a dia da gente de sua época, tal qual o poeta latino Catullo imortalizou em palavras o próprio cotidiano e as inquietações dos seus contemporâneos romanos. Em Roma, o poeta Catullo decidiu desenhar sua época com palavras em suas famosas “nugaes”. Séculos depois, no Maranhão, Nhozinho optou por narrar em mínimas esculturas as grandezas esquecidas de seu povo.

            O artista faleceu em São Luís poucos dias depois de completar seu septuagésimo aniversário, no dia 23 de maio de 1974. Como a maioria dos artistas populares, Nhozinho também teve seu trabalho relegado ao olvido, mas aos poucos vem sido resgatado graças aos esforços de pesquisadores como Zelinda Lima, que muito lutou pelo reconhecimento desse artista, e de Roldão Lima, autor do livro "Vida e Arte de Nhozinho", publicado cinco anos após o passamento do escultor.

            Mais recentemente o trabalho desse fantástico artista tem despertado o interesse de intelectuais como, por exemplo, Paulo Herkenhoff, Lélia Coelho Frota e Luciana Carvalho, todos reconhecidos nacionalmente como alguns dos mais representativos estudiosos das artes brasileiras.

            Atualmente, boa parte da produção do mestre maranhense pode ser visitada na casa-museu que leva seu nome (Rua Portugal, 185, Centro Histórico).  Sua vida e sua obra também já renderam alguns artigos, exposições e livros, como "Nhozinho: Imensas Miudezas" (vários autores), que reúne trabalho de diversos pesquisadores. Mas ainda há muito a ser descoberto e (re)avaliado na obra desse artista que transformou deficiência em eficiência soube colocar o máximo de seu talento no mínimo espaço necessário à realização de seus sonhos artísticos.


segunda-feira, 21 de julho de 2025

PELAS PÁGINAS DA CIDADE

 Novos artigos de segunda #41

Hoje trago de volta um artigo que publiquei há alguns anos, quando era colaborador assíduo do Jornal O Estado do Maranhão. Era lá que meus textos eram acolhidos e publicados. Mas, um dia tudo muda... Eis mais uma homenagem à minha querida Cidade.

Fonte da Imagem: Arquivo do autor


UM PASSEIO PELAS PÁGINAS DA CIDADE

José Neres


São Luís, ao longo de seus quase 413 anos, sempre serviu como musa inspiradora para inúmeros artistas. A Cidade é uma inesgotável fonte de inspiração para poetas, fotógrafos, cronistas, pintores, escultores, pesquisadores, contistas, compositores, romancistas... Suas ruas, fontes, becos e casarões, que testemunharam inúmeros crimes, conluios, amores contrariados ou bem resolvidos, também serviram de cenário para inúmeras obras literárias que podem inclusive servir como guia para um passeio literário pela Cidade.

São Luís é tão rica em aspectos culturais que a pessoa interessada pode inclusive escolher as credenciais do cicerone que descortinará os véus do tempo e da história para olhos, ouvidos, olfatos, tatos e paladares ávidos por tantas informações que circulam pelo ar em forma de narrativas, poemas, músicas, imagens e tantas outras nuances artísticas. Hoje, nesta data tão especial, circularemos pela cidade acompanhados de seus prosadores, homens e mulheres que se apaixonaram pela Ilha e derramam esse encantamento em contos, novelas e romances que têm a Cidade como cenário.

Comecemos nosso passeio sentindo o calor abafadiço da capital maranhense, narrado pelo talento de Aluísio Azevedo em seu “O Mulato”. Passeemos por ruas, casas, praças e igrejas e atentemos para o amor entre Ana Rosa e Raimundo e nos assustemos com as tramas perpetradas por Dona Bárbara e o Padre Diogo. A seguir continuemos nosso caminho ouvindo os gritos de liberdade que ecoaram da notícia da libertação dos escravos e que foram tão bem descritos, de forma ácida e crítica, por Nascimento Morais em seu “Vencidos e Degenerados”.

Sob um sol escaldante, nada melhor que parar um pouco na casa da professora de Inglês Miss Maude, a doce e reclusa protagonista de “Teias do Tempo”, romance de Conceição  Aboud. Podemos subir pela “Rua do Sol”, livro de Origenes Lessa, escritor paulista que viveu parte da infância na capital maranhense e daqui tirou parte de sua inspiração. Nesse périplo, podemos conviver com os dramas de Bárbara de Sena, mais conhecida como “Maria da Tempestade”, que, pelas mãos de João Mohana, viveu uma tórrida e trágica história de amor com o jovem Guilherme e teve seu destino cruzado com o da enigmática Cora Mendes.

Nessa jornada pela Cidade, é quase impossível em algum momento não cruzarmos com Cínzia e Luíza, personagens do Romance “A Parede”, de Arlete Nogueira da Cruz, ou mesmo cruzar os passos com uma senhora idosa a pedir esmolas pelas ruas do Centro Histórico, em sua eterna litania. É bom passar pelo Lira/Belira e conhecer “Maria Arcângela”, protagonista de Erasmo Dias, em novela homônima. Sem dúvida, iremos tentar dar alguns passos de bumba meu boi inspirados por essa bela e sofrida moça.

 É importante não se assustar quando, em uma noite de chuva, um cachorro-quente se transformar no “Monstro Souza”, interessante criação de Bruno Azevêdo, nem com o horrível crime do Desembargador Pontes Visgueiro, que assassinou a jovem Mariquinhas e escondeu o corpo da garota em uma caixa, como conta o saudoso Waldemimo Viana em “A Tara e a Toga”. Quase ao fim de nossa caminhada, ainda dá tempo de conhecer a história de “Ana Jansen”, narrada por Rita Ribeiro e de passear pelo Baixo Meretrício na prosa de Wilson Martins, em “Candelabro de Deus”. Sobra pouco tempo, mas ainda o suficiente para ouvir “O Entrevistador de Lendas” na voz e na pena de José Ewerton Neto.

Finalmente, façamos uma parada no “Cais da Sagração”, sigamos até o “Largo do Desterro”, e ali esperemos Damião, que nos guiará por toda a Cidade ao som de “Os Tambores de São Luís”, tendo sem suas mãos um mapa cuidadosamente desenhado por Josué Montello.

Com um pouco mais de vontade esse passeio-trajeto pode ser feito também com base na inspiração de poetas, cronista, compositores... Basta tentar e seguir a rota das artes...


Fonte da imagem: Arquivo do autor


 


sábado, 19 de julho de 2025

NOSSAS TRAVESSAS

 

 Crédito da imagem: Linda Barros 

NOSSAS TRAVESSAS 

(José Neres)

Um dia desses, movido por imperiosa necessidade, andei por diversas ruas de nossa amada São Luís. Não pelas ruas badaladas e que servem como cartão postal para atrair turistas. Mas sim pelas ruas paralelas e pelas travessas pouco frequentadas, mesmo em um dia banhado de sol.

A conclusão a que cheguei é que essas ruas e travessas estão abandonadas à própria sorte. Calçamento irregular, crateras, esgotos estourados, lixo espalhado por toda parte, terrenos baldios... Esses são apenas alguns dos problemas visíveis em uma plena tarde de meio de semana. Imagino como são essas ruas nos finais de tarde e no período da noite.

Nesse dia, uma senhora me pediu (quase me suplicou) ajuda: "Posso ir acompanhando o senhor? Morro de medo de passar por aqui." Ela comentou que por ali sempre havia alguns elementos de índole duvidosa e que constantemente havia assaltos na região. 

Não duvidei. Não tinha como duvidar de algo tão evidente.

É preciso dar uma atenção especial para nossas ruas menos visitadas. É preciso respeitar nossa população. É preciso fazer de cada canto da cidade um lugar seguro e acolhedor. É preciso ter com as ruas menos famosas um cuidado parecido com aquele dispensado as ruas por onde passam os turistas. Se bem que essas ruas tão badaladas nem sempre são modelos de urbanização e de limpeza.

Uma cidade como a nossa não pode  viver só de bandeirinhas. 


quarta-feira, 16 de julho de 2025

BARRA DO CORDA

 

Fonte da imagem: arquivo do autor 

ETERNO ABRAÇO 

José Neres 

(Para Félix Alberto Lima)


Na bela matemática da vida
corda e barra podem ser um traço -
Tênue linha no horizonte tecida -
Para juntar e dividir espaço.

Podem também ser imagem vivida
Em um tímido giro de compasso,
Ou talvez história reproduzida
Pelo som do eco oco de nosso passo.

Cada travessa é velha conhecida,
Cada rosto reconstrói um pedaço
De cada memória adormecida…

Aqui não há barra ou corda de aço 
Ou qualquer outra força reunida
Que separe os rios do eterno abraço.





domingo, 13 de julho de 2025

ESSA ESTRANHA MANIA...

 Novos artigos de segunda #40

Fonte da imagem: arquivo do autor 

Como, possivelmente, amanhã não terei como postar o artigo, antecipo-o para hoje. Mas como já é quase segunda... Está valendo!

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ESSA ESTRANHA MANIA…

José Neres 


O que é necessário para se escrever um bom conto? Temos aí uma pergunta frequentemente formulada e reformulada, mas para a qual dificilmente um dia se terá uma resposta definitiva ou pelo menos satisfatória para a maioria das pessoas.

Em primeiro lugar, é preciso ter algo a dizer. É importante que o escritor ofereça ao leitor uma oportunidade de ter uma experiência que deixe suas marcas e provoque algum tipo de reflexão. Um bom trabalho com a linguagem também é essencial. Há muitas formas de se atingir um objetivo, todas elas passam, de alguma forma, pela escolha certa das palavras e pela tentativa de mostrar que é possível narrar algo aparentemente simples, mas de um modo diferente, fora do convencional.

Só isso? Claro que não. É necessário usar cada frase como se fosse um elo de uma corrente que tenha como função “prender” o leitor na tessitura da narrativa e, no final, fazê-lo perceber que algo está faltando, mesmo que a história contada esteja tecnicamente completa, e que aquilo que falta talvez não necessite ser contado, pois se trata de algo inefável capaz de acionar o dispositivo secreto que liga os momentos de leitura às asas da imaginação.

Parece que em seu livro “A estranha mania das abelhas” ( Urutau, 2022, 64 páginas), a jovem escritora Rute Ferreira está atenta a todos esses detalhes e a muitos outros que tornam a leitura de contos algo prazeroso e especial.

Composto por apenas seis contos bem estruturados, o livro foi elaborado com base em pelo menos quatro pilares temáticos: o feminino, a família, a morte e a busca de si, todos eles entrelaçados com reflexões que vão da crítica social até às conflituosas relações amorosas, trazendo nas entrelinhas uma gama de incômodas questões que precisam ser discutidas.

O primeiro conto do livro - "Casa de farinha" - traz à baila as discussões sobre traumas, lutos, superstições e maternidade. Tudo mesclado com um suave tom de mistério que faz o leitor sentir-se lado a lado com as personagens na busca de uma verdade que pode ser desesperadora e incômoda. 

Violência, ciúmes e relações parentais marcam o centro do conto “O vestido”. Com maestria, a autora consegue sair de uma apresentação aparentemente lírica e pueril para chegar a um desfecho com tonalidade neonaturalista que remete ao estilo de autores como Rubem Fonseca, Dalton Trevisan, Plínio Marcos e Patrícia Melo, mas carregado de desconcertante suavidade.

Rute Ferreira utiliza a metáfora da estrela para discutir dois temas bastante melindrosos: a morte e os preconceitos incrustados na vida em sociedade. No conto intitulado “Uma tragédia de estrelas”, as personagem nem precisam de nome próprio, são tipificadas e retomadas a partir de suas características físicas e/ou comportamentais, para lembrar que às vezes somos apenas um corpo ou um objeto que precisa ser cultuado ou descartado de acordo com a situação abordada em determinado momento.

A morte - que é uma constante no livro - é a temática principal do conto “O retrato”, que traz o reencontro de uma pessoa consigo mesma, com seu passado e com suas angústias minutos antes do momento que separa a vida da morte. Em uma linguagem fluida, a autora descortina os meandros de toda ema existência que tem hora marcada para terminar.

No penúltimo conto, que empresta seu título ao livro, a escritora novamente recorre às relações parentais e às consequências da perda definitiva de um ente querido. Nesse texto, as dicas sobre o desfecho são apresentadas de modo sutil, levando o leitor mais desatento a trilhar por falsas veredas até descobrir que está sendo conduzido por uma caminho falso. A relação entre uma mãe e uma filha é esmiuçada a fundo e a ausência de uma tem reflexos na permanência da outra.

Em “Seu destino é uma fuga, Olga!” O leitor se depara com uma jovem mulher que volta a suas origens para reencontrar-se com um antigo amor e com a própria história. É uma espécie de acerto de contas com lacunas que precisam ser preenchidas e com antigas histórias que devem ser recortadas. Será que é possível parar de fugir de si mesmo?

Rute Ferreira escreve bem e merece ser lida linha a linha. Ela escolheu um bom caminho na escrita e está construindo um estilo marcante e que poderá trazer bons frutos para nossa literatura contemporânea. Seus contos são bons e, de certa forma, ajudam a responder às questões propostas no início desde artigo.

Esperemos novos livros!

PS: Quase no final do livro, em uma daquelas páginas que a maioria das pessoas teima em não ler, a autora de A estranha mania das abelhas, entrega uma das chaves para a interpretação dos textos e faz um desafio para os leitores. Ela elucida de onde surgiu a ideia para a confecção dos contos e evoca sua admiração pelo escritor pré-modernista Lima Barreto…

Qual a relação entre o autor de Triste fim de Policarpo Quaresma e o livro de Rute Ferreira? É preciso ler ambos para descobrir. É preciso parar com essa estranha mania de querer tudo tão mastigado.


Clique e leia um conto de Rute Ferreira 

segunda-feira, 7 de julho de 2025

HOMOAFETIVIDADE E LITERATURA MARANHENSE

 Novos artigos de segunda #39

Fonte da imagem: arquivo do autor 

RELAÇÕES HOMOAFETIVAS NA LITERATURA MARANHENSE

José Neres

 Há crime nisso? Eu gostar da pessoa do mesmo sexo? 
Diga-me. Eu sou um criminoso por isso?
(Fala do delegado Pablo no livro Mortes em Cadeia, de Pedro Neto)


Não sei se alguém já fez, está fazendo ou pensa em fazer, mas acredito que as personagens da literatura maranhense que assumem (ou ocultam) sua homossexualidade dariam margens para belos trabalhos de pesquisa.

Vez ou outra, quando aparece um edital aberto para apresentação de comunicações em congressos acadêmicos, fico com a vontade de apresentar um trabalho com essa temática. Mas, por algum motivo, sempre enveredo por outras linhas. Dia desses, comecei a enumerar romances brasileiros com essa vertente, creio que cheguei sem muito esforço a sessenta e oito títulos já lidos, desde o Bom Crioulo (Adolfo Caminha) até Outono de carne estranha (Airton Souza).

Um dia dará certo. Mas, enquanto esse dia não chega, vou apontar abaixo algumas obras da literatura maranhense que apresentam personagens homoafetivos. Claro que existem muitos outros livros que desconheço e muitas outras personagens que também mereceriam aparecer no estudo. Ficarão para a próxima...

Embora não seja uma narrativa plenamente literária, a mais remota menção à homossexualidade no Maranhão se deu no livro Viagem ao norte do Brasil feita nos anos de 1613 a 1614, um estudo feito pelo padre Ives D’Evreux, que conta o episódio da morte do rapaz tupinambá conhecido como Tibira do Maranhão e que foi executado publicamente pelos religiosos por causa de sua sexualidade que fugia aos padrões aceitáveis pela Igreja da época. Essa história foi retomada em vários estudos, como é o caso do livro A Inquisição no Maranhão, de Luiz Mott e Os Devassos do Paraíso, de João Silvério Trevisan, que considera esse o primeiro crime “homofóbico registrado no Brasil", ideia compartilhada também por Luiz Mott e outros pesquisadores.

Esse acontecimento serviu como inspiração para um poema escrito pela cordelista Salete Maria, que tem como título Tibira do Maranhão: Santo Mártir Homossexual, com uma das estrofes reproduzida a seguir:

Trata-se da execução
De um índio homossexual
Que viveu no Maranhão
E lá teve final
Com um tiro de canhão
Lançado por um cristão
Que “lutava contra o mal”.

Já no âmbito estritamente literário, no romance naturalista O Cortiço, de Aluísio Azevedo, temos a figura de Albino, que é descrito pelo narrador como “um sujeito afeminado , fraco, cor de aspargo cozido e com um cabelinho castanho, deslavado e pobre, que lhe caía, numa só linha, até ao pescocinho mole e fino”. A figura de Albino no livro é geralmente apresentada de forma caricata e isenta de mistério. O que não acontece com relação a Léonie, que vai ganhando densidade ao longo da narrativa, culminando no jogo de sedução que empreende para seduzir a até então inocente Pombinha, que, meses depois, desapareceu de casa, indo, para desgosto da mãe, viver com Léonie em um quarto de hotel.

Na peça O Patinho Torto ou os mistérios do sexo, de Coelho Neto, a personagem Eufêmia se vê como “um envelope de cartas trocadas”. Ela destoa do padrão esperado para uma mulher do início do século XX: fuma, sonha em participar da Guerra, tenta fazer a barba e usa trajes masculinos. Seu noivo, Bibi, tem que se conformar com a repentina mudança de sua amada. É um livro repleto de sutilezas e que leva o leitor a refletir sobre algumas regras de sexualidade impostas pela sociedade da época.

São essas imposições e normativas sociais que angustiam e deprimem Otávio, personagem do romance Teias do Tempo, de Conceição Aboud, levando-o inclusive a pensar em suicídio por não conseguir assumir sua homossexualidade de forma aberta perante uma sociedade que reprime e não sabe conviver com as diferenças.

Mesmo não sendo o tônus central de sua produção literária, Josué Montello também deixou suas contribuições acerca das percepções literárias sobre a homoafetividade. Seu livro mais conhecido sobre o assunto é Uma sombra na parede, que traz a tórrida e então proibida relação amorosa entre Ariana e Malu, duas amigas que têm atrações físicas uma pela outra. No livro, chama atenção também a figura de Mundiquinha Dourado, uma mulher independente que é acusada de ser uma virago por conta de sua aparência máscula e de suas atitudes tidas como pouco femininas.

No conto O Pai, que está enfeixado no livro Um rosto de menina Montello novamente toca no assunto. Desconfiado de que o pai está enganando a mãe com uma funcionária da empresa, Alexandre decide seguir o genitor. Ao descobrir que o pai tem, na verdade, um caso com outro rapaz, o filho não suporta conviver com essa constatação e decide pôr fim à própria vida.

No livro O homem que derreteu e outros contos, o escritor e jornalista Marcos Fábio Belo Matos apresenta ao leitor o conto intitulado Lembranças, no qual dois antigos colegas se encontrem em uma viagem de ônibus. Os dois nem mesmo chegam a se falar, mas ao ouvir a notícia de que o colega está prestes a casar-se, o outro rapaz traz á memória os temos em que foram felizes, quando eram, furtivamente, amantes.

No conto/novela Ventos de verão, que é um dos textos do livro Os novos degredados do Éden, o professor e escritor Inaldo Lisboa apresenta a gênese e a evolução do tórrido romance envolvendo o sensível Dino e o pragmático Mauro. A mesma pressão social e parental sofrida por Otávio em Teias do Tempo, de Conceição Aboud, também atormenta Dino em Ventos de Verão, levando-o a efetivar o suicídio. No livro, reinam as denúncias sociais e o clima de hipocrisia, pois mesmo outros rapazes que declaram já ter tido experiências homoeróticas condenam a relação entre os dois protagonistas.

A romancista Dorinha Marinho, em As diferentes faces do amor, constrói um enredo no qual dois casais homoafetivos se cruzam para compor um cenário que envolve crimes, superação, estupros, preconceitos e aceitação. De um lado está a médica e ex-freira Olívia vivendo uma relação com a jovem e sofrida Lucy. Do outro, estão Homar e Sandro. A autora consegue mesclar as narrativas de modo a despertar no leitor a simpatia por essas pessoas que conseguem estabelecer uma harmonia pessoal dentro de um conflito social.

O padre Rafael, do conto "... Quando sou, não sendo", de Rita de Cássia Oliveira, vive um forte conflito identitário: na paróquia, é um padre; na universidade, é um talentoso mestrando que vive uma tórrida relação amorosa com Eduardo, carinhosamente chamado de Edu pelos íntimos. No conto é possível acompanhar as dúvidas e certezas vividas por esse rapaz dividido pelas inúmeras perguntas para as quais não encontra respostas.

Outra personagem interessante é o delegado Pablo Rodrigues, do romance Mortes em Cadeia, de Pedro Neto. Imiscuída em uma nuvem de mistério e em uma série de crimes que abalam uma pacata cidade, a narrativa vai, aos poucos, descortinando as ações delituosas de um delegado que se utiliza do poder emanando de seu cargo para conseguir sexo com os homens que estão presos na cela de sua delegacia. Mas esse não é o ponto final do mistério. Há outras fraturas sociais que são expostas ao longo da narrativa.

Algumas dessas fraturas aparecem também em Amores, Marias, Marés, romance de Chico Fonseca, ambientado na São Luís da década de 1960. No centro da história estão a professora e historiadora Maria Ellena e a jovem estudante Mariana. Durante pesquisas sobre a participação dos negros na história do Brasil e do Estado, as duas acabam se envolvendo. O livro traz diversas abordagens que perpassam por questões sociais, sexuais e familiares.

Para finalizar esta breve lista, temos também o livro A moça da limpeza, de Lindevania Martins. Ali, é possível encontrar o conto A hora da verdade, que mostra o constrangimento de Fernanda, uma viúva de 28 anos, que, durante uma entrevista com o dono da empresa na qual trabalha, tem que declarar com quantos homens havia ido para a cama no último ano. Incisiva, ela diz que não dormiu com nenhum homem no período indagado. O que é verdade, pois logo o leitor descobre que ela vive com Marcela, quem é companheira desde a morte do marido.

Pronto. Fizemos uma sumária lista de livros maranhenses que tocam no assunto da homossexualidade. Um tema que sempre deve ser tratado com o devido respeito e pode dar margens para muitos e variados estudos. Nem sabemos se utilizamos as nomenclaturas adequadas, mas aconselhamos, antes de encerrar, que todos os interessados no assunto leiam o livro de poemas Rapaz, publicado pelo falecido poeta Mariano Cassas. É um livro raro, mas que vale a pena ser lido.

sábado, 5 de julho de 2025

UMA TRILHA SONORA DO AMOR

Imagem criada com auxílio de Inteligência Artificial 

Desafio vocês a encontrarem as aproximadamente oitenta músicas que estão citadas no texto abaixo. Algumas são fáceis, outras exigem mais atenção.
Alea jacta est.

UMA TRILHA SONORA DO AMOR 

José Neres 

Não lembro se isso aconteceu sábado (todo sábado era assim) ou em um dia de domingo. Mas sei que foi em um dia em que a terra parou. Ele estava lá. Era a mesma praça, o mesmo banco, as mesmas flores, o mesmo jardim. Tudo estava igual e ele estava triste. “Tudo está no seu lugar, graças a Deus” – pensou.
 Um carro vermelho passou a cento e vinte por hora, um gato preto cruzou a estrada, e uma brasília amarela estacionou. Ela parece que estava à toa na vida, chegou em frente ao portão. Não entrou. Aquela rua não é mais a mesma rua... A placa indicava: “Vende-se esta casa ao primeiro que chegar”.
Ele não a conhecia. Mas não pôde deixar de admirá-la. Seu pensamento começou a voar, voar, subir, subir: “Que coisa mais linda, mais cheia de graça”. Tinha que falar com ela.
 - Olá, como vai?
 - Vou indo.
E você? Tudo bem?
 - Dona, desculpe, mas, você é linda, mais que demais. Você é meiga demais. Por você sou capaz de roubar até a lua. 
 Ela sorriu.
- Sou apenas um rapaz latino-americano, sem dinheiro no banco. Mas não sou vagabundo, não sou delinquente, sou um cara carente. Sou uma espécie de gavião vadio sob o sol. 
- Confesso que ainda sou uma garotinha. Você é bonito. É um negão de tirar o chapéu, mas não vou dar mole, senão... E você deve ter mulheres de todas as cores, de várias idades, de muitos amores... Ainda lembra sua primeira namorada? Já que a primeira namorada é difícil de esquecer... 
- A primeira foi Iracema, mas ela morreu atropelada, dela não sobrou nem mesmo um retrato.
- E as outras? 
- Teve a Jeniffer, que eu encontrei ela no Tinder, mas não durou muito. De Conceição eu me lembro muito bem. A Amélia, que se considerava uma mulher de verdade. A Madalena, que acreditava que o mar é uma gota comparado aos prantos seus. Lembro da Jéssica, que se achava a coisa mais linda que Deus soube fazer. A Eva, que desapareceu, até parece que fugiu numa última astronave. Uma cigana muito bonita de cabelos muito negros chamada Sandra Rosa Madalena. A Ana Júlia, que hoje trabalha como secretária na beira do cais. E a Leydiane, que jurou que ia me amar de janeiro a janeiro, até o mundo acabar, mas me traiu e foi viver em um cabaré. A todas amei como se não houvesse amanhã. Mas descobri que o pra sempre sempre acaba. Eu não sou cachorro não. Acho que sou inútil, mas espero o segundo sol chegar, para realinhar as órbitas do planeta.
- Hummm!!! Mulher nova, bonita e carinhosa, faz o homem gemer sem sentir dor. Eu gosto de ser mulher. 
- Qual seu nome? 
- Beth
 - E você? Pode falar de seus amores? 
- Não foram tantos assim. Teve o meu amigo Pedro, que acabou provando que tudo acaba como começou. O inseguro José, que vivia perguntando “e agora?”. Com ele foi rápido, logo a festa acabou, a luz apagou... O Manuel foi pro céu, ele era um moreno alto, bonito e sensual... Gostava muito dele. Acabei procurando auxílio profissional. Aí um analista amigo meu disse que desse jeito não vou ser feliz direito. Deixou claro que tudo passa, tudo passará. Solitária, pensei até em rifar meu coração, fazer um leilão, vendê-lo a quem der mais. Acho que sou uma mulher de fases. 
 Ela começou a chorar. 
Ele tentou abraçá-la. Mas foi surpreendido com uma frase: 
- Tire sua mão de mim, eu não pertenço a você. 
- Calma, Beth, Calma. 
- Não vou chorar lágrimas de crocodilo. Preciso de uma verdade chinesa
 - Linda, só você me fascina, te desejo, muito além do prazer. 
- Quero viver seguindo a receita da vida normal... Viver e não ter vergonha de ser feliz. Quero ir para onde Deus possa me ouvir...
 - Tu és divina e graciosa, estátua majestosa do amor. Beija-me muito, como se fosse essa noite a última vez. Fica comigo esta noite e não te arrependerás. 
 Ela parou, olhou para ele e disse: 
- Uhhhh, eu quero você como eu quero... Você me deixa louca...
 (...) 
Eu juro por mim mesmo, por Deus, por meu pai, que queria saber como acabou aquela história de amor. Mas, de repente, o telefone toca, avisando que é chegada a hora de ir. Tenho pressa. Vou de táxi. Fui embora, caminhando e cantando e seguindo a canção. Torço por aquele rapaz que parece que também amava os Beatles e os Rolling Stones. Ele era um vagabundo como eu, que também merece ser feliz.

terça-feira, 1 de julho de 2025

DOIS EVENTOS

 

Professor Doutor Dino Cavalcante 

DOIS EVENTOS

(José Neres)


Ontem - último dia do mês de junho, quando muitas pessoas se preparavam para um mergulho em umas merecidas férias - tive a honra de participar de dois eventos muito importantes. Vamos a eles:

UMA AULA ABERTA

Assistir à magistral aula aberta ministrada pelo professor Dr. Dino Cavalcante como evento de encerramento de sua disciplina no Mestrado em Letras da Universidade Federal do Maranhão. 

Mesmo com a concorrência das matracas e dos jogos transmitidos pela TV, o professor conseguiu reunir um bom número de pessoas interessadas em uma discussão sobre literatura, leitura e formação de professores. 

Sempre dinâmico e cercado de muitas referências teóricas, mas sem se esconder em um emaranhado de ideias alheias, o professor manteve a plateia atenta durante aproximadamente quatro horas. 

Houve muitas discussões, inúmeros depoimentos e algumas preocupações em comum: O que estão fazendo com o ensino de Língua Portuguesa em nossas escolas? Será que as aulas estão inoculando nos alunos o gosto pela pesquisa e pela leitura? Será que o estudo da Língua Portuguesa se resume a fazer os alunos a decorarem regras gramaticais e algumas nomenclaturas específicas? Que pode ser feito para melhorar esse quadro tão incômodo? Como fazer a leitura se tornar parte integrante do cotidiano de nossos educandos?

Foram muitas as sugestões e respostas. Senti em alguns depoentes uma gama de desespero, um quase pedido de socorro. Infelizmente, como foi lembrado por um participante, quem tem poderes para tentar melhorar a situação educacional do País nunca está presente em discussões como essa que ocorreu ontem. 

No final, o professor deixou claro que os problemas apresentados iriam tirar seu sono. Bom seria se essas constatações fizessem os professores - depois dos bons serviços prestados à Nação - dormirem bem e trouxessem um pouco de insônia aos nossos governantes. Mas aí já é querer demais. Eles dormem tranquilos, em berços esplêndidos. Sempre fugiram à luta e não guardam remorsos. 


UM CLUBE DE LEITURA


Um dia desses, recebi um convite inusitado: servir como mediador em um Clube de Leitura. 

Confesso que nunca participei (pelo menos que me lembre) de nenhum deles e que nem tinha ideia de como funcionava. Mas me arrisquei a aceitar por alguns motivos:

Trata-se de um Clube de Leitura de Barra do Corda, uma cidade que não conheço pessoalmente, mas de onde cultivo grandes e carinhosas amizades;

O convite foi feito de forma tão amável pelo professor e ativista cultural Antonio Clementin, que, caso eu recusasse, provavelmente levaria um sentimento de culpa pelo resto da vida;

A obra a ser debatida era I-Juca Pirama, de Gonçalves Dias. Não havia como recusar um pedido para comentar um dia mais belos poemas da Língua Portuguesa!

É leitura, é Literatura… E essas duas palavras sempre conseguem abrir brechas em minha tumultuada agenda.

Pois bem. No horário marcado, lá estava eu, brigando contra uma internet que achou de ficar lenta, lentíssima bem na hora do encontro .

Mas deu tudo certo. Como foi bom falar cerca de uma hora sobre Gonçalves Dias, sua produção literária, sobre seu estilo e, principalmente, sobre a bela mini epopeia intitulada I-Juca Pirama, o rapaz que chorou para poder proteger seu pai cego que estava perdido na mata, que lutou para provar que era bravo, que entrou para a memória daquele povo guerreiro.

Enfim, foi uma ótima conversa. Acredito que consegui clarear algumas passagens do poema. 

Seria tão bom se toda cidade tivesse alguém com essa fantástica ideia de montar um clube de leitura…

Ainda dá tempo. O futuro agradecerá. 

Alea jacta est. 

segunda-feira, 30 de junho de 2025

CONTO: FIM DE FESTA

Novos artigos de segunda #38

 FIM DE FESTA

José Neres 

Imagem criada com auxílio de Inteligência artificial 


Para ele a vida era uma festa sem pausa e sem data para acabar. 

Desde os catorze anos havia assumido sua homossexualidade. Foi quando conheceu no rosto toda a ira de um pai machista, mas a quem amava de coração.

Sua mãe o feria de outras formas. Com o silêncio e o isolamento. Tinha comida, casa, carro à disposição, dinheiro e tudo o que queria, menos o abraço, as palavras e o sorriso da mãe. Mesmo assim a amava. Sempre a amou. Mas não tanto quanto amava o pai. 

Aprendeu com ele que era preciso estudar. A vida era cruel com todos. Era preciso ter uma profissão. Estava prestes a completar dezoito anos. Tinha que decidir seus rumos na vida.

Maquiador? Não. Até tinha talento, mas não se sentia com o desejo de passar a vida cuidando da beleza alheia. Bastava cuidar da sua. Alto. Branco. Olhos esverdeados. Cabelos acastanhados. Corpo esculpido em academias. Em silêncio, até poderia enganar alguém. Mas gostava de falar. Adorava se expressar. 

Arquiteto? Desenhava muito mal e não tinha boas ideias. Melhor não!

Professor? Taí uma boa ideia. Decidido. Ia fazer licenciatura. Escrevia bem. Gostava de ler. Pronto… Letras seria seu curso de coração.

Passou no vestibular. Depois de anos, viu o pai sorrir. A mãe continuou indiferente. Ele nem existia. Apenas um corpo. Nada mais…

Destacou-se na universidade. De primeira, ficou fã do professor Dinovaldo, um craque em literatura, do professor Rafaelson, homem de poucas palavras e de muitas ideias e da professora Francy Maria, que, nas horas de folga se divertia no baile funk.

O tempo passou.

A vida era realmente uma festa. Uma festa sem hora para acabar. Com muitos copos e corpos para curtir. Sem muita proteção para usar. 

Mas nunca descuidou dos estudos… foi alunos destaque diversas vezes. Era preciso comemorar, bebemorar, namorar, se entregar.

O pai fez questão de patrocinar a festa de formatura. Os dois se amavam. Cada um de seu modo, mas se amavam.

Atenção…

Pela primeira vez desmaiou durante uma bebedeira. Pela primeira vez, vomitou durante uma orgia. Pela primeira vez sentiu-se cansado. Pela primeira, ficou na fila de um pronto-socorro…

O cansaço bateu à sua porta. Era preciso desacelerar, cuidar da saúde do corpo. 

Chegou a grande noite. 

A mãe havia avisado que não iria à formatura. O país garantiu que iria. 

Chegou a hora… todos em fila. Somente ele sozinho. 

Uma mensagem. “Tô chegando, filho! Pensamento positivo…”

Um sorriso.

Outra mensagem…

Laboratório…

“Os resultados de seus exames saíram. Favor comparecer ao laboratório para novas coletas. Atenciosamente…”

Mensagem:

“Cheguei. Onde está você, filho?”

Avistou o pai, que se aproximava trazendo um belo sorriso e fazendo um sinal de positivo. 

Chorou…

Toda festa tem hora para acabar… 

Tudo positivo. O abraço do pai. O sinal do pai. O aplausos dos colegas e, sem dúvida, o resultado dos exames. 

sexta-feira, 27 de junho de 2025

UMA MANHÃ COM ESTELA

 ESTELA: MAIS UMA ESTRELA EM MINHA VIDA

José Neres 

Fonte da imagem: reprodução da capa do livro. Arquivo pessoal


Já faz um bom tempo que ela chegou aqui a minha casa. Uns oito a dez meses, acredito. Pequena. Discreta. Silenciosa e pensativa, ela no começo passou quase despercebida. Ficou ali em um cantinho e de lá observava toda a movimentação. Às vezes, com sua voz pacata, ela me chamava. Preciso contar-lhe minha história. Me ouça, por favor. Mas, no meio de tanto barulho, eu acabava deixando de atender àquele grito de socorro…

Mas hoje foi diferente. Quando me preparava para sair, ela deu gravidade a sua voz e disse me leva. Preciso conversar um pouco. Ou você vai ser como tantos outros que me ignoraram durante minha vida. Confesso que me senti meio envergonhado e a convidei para sair. Vamos passear um pouco. Preciso de companhia para um momento ocioso que terei. Você tem a manhã inteira para me contar sua história. Não me decepcione.

Passamos boa parte da manhã juntos. Educadamente, ela se apresentou: Meu nome é Estela, quando eu era mais nova, pensei em ser filósofa, mesmo sem saber o que vem a ser a Filosofia. O nome dela eu já conhecia. Não foi novidade para mim. Mas, depois, calmamente, ela começou a falar-me sobre sua mãe, seu irmão, sua avó e sobre a morte. Sim a morte, esse tema que tanta gente evita, mas que sempre faz e fará parte de nossa trajetória.

Estela traz na sua pele as marcas de nossos antepassados escravizados. Traz nos seus cabelos crespos os fios nem sempre bem contados de nossas origens. Traz em seu histórico de vida todo um conjunto de marcas das tantas violências que sofreu. Traz em seu olhar todas as discriminações que sofreu por conta de sua pele, de seu cabelo e de condições sociais. Ela me falou de fome, da mãe adoentada, do pai ausente, de sua vida em Porto Alegre, de sua viagem para o Rio de Janeiro e de todas as transformações por que passou em tão pouco tempo. 

Ela é uma menina com apenas dezesseis anos, cuja vida, ambientada na época de eleição de Fernando Collor de Mello, teve uma brusca aceleração e que rapidamente foi descobrindo o próprio corpo, os próprios desejos e as dores que suas decisões lhe trouxeram. Ela saiu da condição de menina-menina para menina-moça e menina-mulher em um abrir e fechar de olhos. Mas o mundo não teve muita paciência para com essas mudanças. 

Ela se abriu comigo. Contou-me toda a sua história de vida e me mostrou que é possível fazer perguntas sem usar interrogações. Só me fez um pedido: por favor não faça aquilo que os jovens de hoje chamam de “spoiler”. Prefiro que cada pessoa descubra por si mesma minha trajetória, meus percalços, minha vitórias e minhas dúvidas. 

No final da manhã, ela me agradeceu pela companhia e pelos momentos que dispensei a ela. Disse que queria voltar para o lugar onde passou esses últimos meses e que estava satisfeita em contar sua história para alguém. Voltou para lá e agora está descansando, com um sorriso de alívio estampado em seu sofrido rosto.

Quem quiser conhecer em detalhes a vida da jovem Estela, deve ler o livro Estela sem Deus (Companhia das Letras, 2022, 181 páginas), romance escrito pelo talentoso Jeferson Tenório.

De minha parte, posso dizer que tive uma bela manhã ao lado de Estela. Vale a pena conhecer esse fragmento tão sofrido de uma vida que pode estar corporificada em qualquer esquina de nosso país.

#RomanceBrasileiro #LiteraturaBrasileira #JeffersonTenorio #LiteraturaContemporanea

domingo, 22 de junho de 2025

MARIA LUIZA DA CUNHA LOBO

 Novos artigos de segunda #37

Fonte da imagem: Reprodução de página do Livro do Centenário da Academia Maranhense de Letras 


MARIA LUÍZA LOBO – AINDA UMA INCÓGNITA

José Neres

 

Há muitas nuvens e mistérios envolvendo a história da literatura maranhense. Embora hoje já contemos com um bom número de pesquisas acerca das letras do Maranhão, ainda há muito por descobrir.

Um desses mistérios envolve a vida e a obra da professora e escritora Maria Luíza da Cunha Lobo, filha do casamento do intelectual maranhense Antônio Lobo com Dona Lucrécia Izaura da Cunha Lobo.

Em primeiro lugar, nem mesmo se tem certeza sobre o ano exato do nascimento dessa escritora. Pesquisando em jornais antigos, é possível encontrar diversas homenagens a ela prestadas por ocasião de seu aniversário, em 02 de março, mas é preciso uma busca mais aprofundada em cartórios, igrejas e demais arquivos para dirimir dúvidas.

É pelas páginas dos jornais antigos que se fica sabendo também que, em agosto de 1916, logo após o triste e trágico desaparecimento de seu pai, que ela e sua mãe comunicam aos amigos a mudança para a rua Colares Moreira, nº 47. Provavelmente tal alteração de endereço se deu por conta dos traumas deixados na antiga residência da família, que não suportou continuar vivendo no lar onde perdeu seu pai.

Os rastros deixados por Maria Luíza Lobo são poucos, mas nos permite visualizá-la em novembro de 1921 fazendo provas de Álgebra, História, Língua Portuguesa e demais disciplinas no Liceu Maranhense. Foi possível encontrar também nos arquivos pessoais do grande pesquisador Jomar Moraes, uma dedicatória de Antônio Lobo para sua filha em dedicatória na folha de rosto do livro A doutrina transformista e a variação microbiana. O livro foi publicado em 1909, mas o autógrafo (à minha querida filha Maria Luíza) é datado de 9-9-1913.

Poucos são os registros sobre sua vida pessoal, mas no dia 15 de abril de 1925, na página 3 do jornal A Folha do Povo, foi possível localizar essa interessante nota sobre seu noivado.

O Sr. Leocádio Martins Ribeiro, sócio da conceituada firma Rodrigues Drumond e Cia, no domingo último, pediu em casamento a inteligente e prendada Maria Luíza Lobo, filha do ilustre jornalista Antônio Lobo.

Aos jovens distintos noivos, elementos de relevo da nossa culta sociedade apresentamos nossos votos de felicidade

Seguindo os caminhos trilhados pelo pai, ela também mergulhou no mundo do magistério e pode ser encontrada ministrando aulas de Geografia para a turma do terceiro ano na escola que levava o nome de seu genitor. Percebe-se também que, em 1928, ela pede licença remunerada para tratamento de saúde, fato que se repete no ano seguinte.

Os jornais também nos informam que pela Portaria Governamental do dia 30 de agosto de 1946, ela foi nomeada para fazer um estágio na Capital Federal, com bolsa no valor diário de Cr$ 50,00. Nessa época, ela ocupava o cargo de professora de Sociologia Educacional na Escola Normal do Instituto de Educação. No mesmo ano, mas no mês de outubro, Maria Luíza Lobo foi nomeada Consultora-Técnica do Diretório Regional de Geografia.

No ano seguinte, em 1947, essa notável intelectual foi encontrada em Florianópolis, representado o Maranhão no Primeiro Congresso Nacional de Educação de Adultos. Nesse mesmo período, é possível encontrar diversas referências a sua atuação em diversos campos do saber como, por exemplo, a música, o civismo e as relações interpessoais. Algumas de suas palestras sobre casamento, divórcio, menores abandonados e educação podem ser encontradas em jornais antigos do Maranhão e de outros estados da federação.

Quem sabe um dia apareça um/a pesquisador/a que aceite o desafio de vasculhar a vida e a obra dessa mulher que tem passado despercebida em nossa historiografia!!!

Ainda não descobrimos a data do falecimento dessa escritora, no entanto, foi possível identificar que sua mãe faleceu em 1953, no Rio de Janeiro, e que seu corpo foi sepultado no Cemitério São João Batista. A notícia fala que ficam uma filha – “a poetisa Maria Luísa Lobo, e dois sobrinhos, o senhor Dácio Souza, comerciante, e dona Maria do Carmo Santos, viúva do pranteado Nhozinho Santos”, o que indica que até a quele anos nossa escritora ainda seguia seu caminha na face da terra. Depois disso, há poucas informações.

No entanto, parece que o ano mais significativo da vida intelectual de Maria Luiza Lobo foi o de 1935. Foi nesse ano que ela publicou, pela Officina Industrial Graphica, do Rio de Janeiro, seu livro intitulado Traços na Areia, que foi recebido com elogios por parte de Domingos Barbosa, que revelou, em seu texto que:


Ao receber o volume, que se intitula “Traços na Areia”, assaltou-me à mente – enchendo-me o coração de saudade, – uma série de recordações.
E de todas a mais viva foi exatamente ela, Maria Luíza, que eu revi tamanhinha, barafustando e tagarelando em meio aos que amiúde nos reuníamos na Biblioteca do Mestre, para ela o melhor dos pais, para nós o melhor dos companheiros.
A precocidade de sua inteligência já se revelava agudamente vivaz, faz com que o volume recebido não seja, propriamente, uma surpresa.”, segundo texto reproduzido em O Imparcial de 11 de julho de 1935.


O livro, que aparentemente é uma coletânea de crônicas, foi bem recebido pela imprensa da época e recebeu diversos elogios. Infelizmente, trata-se de uma obra que a qual ainda não tivemos acesso.

Foi em 1935 também que Maria Luiza Lobo se inscreveu para a cadeira nº 3 da Academia Maranhense de Letras. Cadeira esta que estava vaga desde a segunda metade de 1926, quando houve o passamento de João da Costa Gomes, que era conhecido literariamente como João Quadros. Consta que Maria Luíza Lobo foi eleita, mas por algum motivo até agora desconhecido, não tomou posse. Mesmo assim em vários documentos e em várias revistas, ela é apresentada como pertencente aos quadros de sócios efetivos da AML. Infelizmente não conseguimos localizar a ata dessa eleição e não há outros registros formais disponíveis sobre esse acontecimento. Fato é que essa cadeira só voltou a ser ocupada em 1939, com a eleição e posse de Assis Garrido.

Sendo verdadeira essa informação, Maria Luíza da Cunha Lobo é a primeira mulher a ser eleita para a Academia Maranhense de Letras. Seria bom se alguém se dispusesse a aprofundar essas anotações!!!

Terminamos essas breves, esparsas e incompletas informações sobre essa escritora maranhense com a reprodução de dois de seus poemas publicados em jornais e revistas. O primeiro – Ave, Brasil – foi publicado no Semanário de Orientação Católica, de 1954. E o segundo foi reproduzido da Revista Aspectos – ano I.

Boa leitura!

 

AVE, BRASIL

(Maria Luiza Lobo)

 
Meu Brasil, meu Brasil, ó minha terra! 
O meu país natal idolatrado!
Terra grandiosa e rica em que se encerra 
O nosso orgulho, pelo teu passado! 
 
O teu nome Refulge entre as mais belas 
Constelações do firmamento azul, 
Em letras de ouro escrito, nas estrelas 
Do majestoso Cruzeiro do Sul! 
 
Nessa cruz misteriosa que reluz,
Numa benção de paz no céu de anil, 
Terra de Deus! Terra de Santa Cruz! 
Bendito sejas sempre, ó meu Brasil!
 
Terra Formosa! Terra em que as campinas
São sempre verdes e a sorrir nas flores! 
Brasil, terra de sol, Terra das minas,
Paraíso das aves multicores! 
 
Terra de extensas e opulentas matas.
E grandes rios de mortal beleza! 
Terra das fontes e das cataratas! 
Maravilha sem par na natureza! 
 
Pátria de um povo Nobre e generoso, 
Temente a Deus e que ama seu país! 
Que tem fé no futuro e, valoroso, 
Trabalha sempre pra te ver feliz.
 
Ave, Brasil, ó meu país natal!
Teu nome viva em nossos corações. 
Só temos um desejo, um só ideal: 
– Ver-te a mais forte e rica das nações! 
 
Por ti, conquistaremos a vitória,
E a morte enfrentaremos a sorrir. 
Confia em nós, Brasil, e espera a glória 
Que haveremos de dar-te no porvir! 

(Maranhão: Semanário de Orientação Católica 16 de dezembro de 1945.pág. 03)

 

PAISAGEM TROPICAL

Maria Luiza Cunha

 

Pleno deserto, ardente, ao sol do meio-dia,
Pleno deserto, nu, todo em fogo abrasado.
Árida vastidão, de amarga nostalgia.
Terreno ressequido, estéril, requeimado.
 
Areal cintilante, à luz de um sol candente,
Que vermelho aparece e rubro se agasalha,
Causticante, cruel, impiedoso, inclemente,
Como um campo de guerra após uma batalha.
 
É uma orgia de sol, num perpétuo verão!
Catarata de fogo, insondável,imensa…
É tão vasta, que escapa aos raios da visão,
E é tanta luz, que ofusca e vibra, de intensa.
 
Muito ao longe, se veem uns morros isolados,
Recobertos de pó, de fogo consumidos, 
Calcinados do sol, austeros, escalvados,
Alevantando aos céus os cumes ressequidos.
 
Por toda a parte, enfim, calor, e mais dor…
Em derredor, o vácuo… inteira solidão!...
Aspérrima rijeza, à calma do equador!...
Pleno aluvio de luz!... Pasmosa inanição!...
 
Pelo fofo areal, movediço e escaldante,
Lá vai a caravana, em marcha sonolenta…
Arrimado ao bordão, o Beduíno, adiante,
Os camelos conduz na estrada poeirenta.
 
E lá vai, pausadamente, até sumir-se nessa
Fímbria de ouro e carmim que ao longe se divisa…
Serás nesse horizonte, além que o céu começa
E o rútilo deserto enorme finaliza?

(Revista Aspectos - anno I, pág. 56)

quarta-feira, 18 de junho de 2025

NOSSA ESQUECIDA LITERATURA



UMA BREVE CONVERSA DE CORREDOR

(José Neres)

Imagem criada com auxílio de Inteligência artificial 


Aproximei-me silenciosamente. O assunto me interessava.

Três adolescentes e uma jovem professora conversavam alegremente. O assunto era suas leituras mais recentes. Uma dizia já ter lido todos os livros de determinada série e que se sentia apaixonada pelo protagonista, apesar de ele ter assassinado várias mulheres ao longo do livro. Mesmo assim era encantador!

Outra confessou que estava ainda no segundo volume, mas que não conseguia parar de ler. “É o livro da minha vida!”, disse maravilhada. “É bandido, mas eu amo ele!”...

A terceira garota, bastante entusiasmada, começou a falar de outros livros. Pareceu-me que o enredo de todos era o mesmo e que as personagens apenas mudavam de nome, de roupa e de cidade. Até a descrição física era bem parecida.

A professora, sempre atenta, também dizia-se maravilhada com aqueles livros e pediu perdão por haver soltado alguns “spoilers” durante a conversa. Recomendou outros livros às garotas. Novamente, veio-me a impressão de que era o mesmo enredo, mesmos personagens, mesmo desfecho impactante.

“Pelo menos estão lendo… Isso é muito importante”. Pensei.

De repente, uma das meninas, alterando levemente a rota do assunto disse: “Esses livros são maravilhosos. Pena que os autores brasileiros não saibam escrever. Só livro chato!” Outra completou: “Sabiam que eu nunca li um livro da literatura brasileira? Não suporto. Começo e abandono logo nas primeiras páginas. Acrescentou que só leria Clarice Lispector e isso mesmo por ser mulher e empoderada. Só por isso…

A professora concordava com a cabeça e esboçava um leve sorriso de satisfação. 

Minutos depois o grupo se dissipou e cada uma tomou seu rumo. 

Feliz com minha invisibilidade, continuei ali ruminando alguns pensamentos. Qual será o futuro da literatura brasileira? Será que nossos escritores são tão ruins assim? Por que a juventude está tão afastada de nossos aspectos literários e culturais? O que pode ser feito para mudar esse cenário? 

Bom saber que os jovens continuam lendo. Triste saber que desperdiçam a oportunidade de mergulhar na alma do próprio povo. A literatura traz muito da alma de um povo…

Sem respostas. Parti da mesma forma que cheguei. Silenciosamente. Mas agora levando uma tristeza no olhar e um peso extra nos ombros.

domingo, 15 de junho de 2025

OS ROMANCES DE JOÃO MOHANA

 Artigo de segunda #36


Fonte da imagem: Arquivo do autor


Hoje, 15 de junho de 2025, é a data do centenário de nascimento do padre e escritor João Mohana, um dos melhores escritores da prosa maranhense. Para não deixar a data passar em branco, antecipo nosso artigo de segunda e reproduzo o texto abaixo, no qual tecemos breves comentários sobre os dois romances do autor.

 

OS ROMANCES DE JOÃO MOHANA

José Neres

(Reprodução de um artigo publicado em 02 de agosto de 1999, no Jornal O Estado do Maranhão)

 

Há pessoas que têm o poder da multiplicação do próprio tempo. Envolvendo-se nas mais diversas atividades, elas conseguem desenvolver seus projetos a contento e ainda lhes sobra fôlego para voos mais audaciosos. Foi o que aconteceu com o bacabalense João Mohana, uma mistura equilibrada de sacerdote, médico, psicólogo, professor, teatrólogo, ensaísta, pesquisador, musicólogo e romancista.

Hoje, passados alguns anos do falecimento do escritor, já se pode ter uma visão mais crítica e racional sobre sua produção literária, principalmente sobre seus dois romances: Maria da Tempestade e O Outro Caminho, duas das melhores obras da prosa maranhense contemporânea. O primeiro traz a dramática história de Bárbara, narrada em um clima de suspense e expectativa, prendendo o leitor da primeira à última página, quando recebe o choque de um desfecho inesperado.

Ao mesmo tempo em que a história é contada, uma série de análises paralelas podem ser feitas: o comportamento humano é esmiuçado, mostrando as personagens sob vários ângulos. Cora Mendes, Guilherme, Ribamar, Padre Tarjet e a família da protagonista simbolizam mais que meros elementos de ficção, retratam, sim, uma boa parte da sociedade maranhense do início do século XX.

O Outro Caminho, premiado pela Academia Brasileira de Letras, conta a história de Eyder, um padre dividido entre as imposições sacerdotais e os desejos da carne. Narrada de forma envolvente, a saga de Eyder desenvolve-se em tom de drama psicológico.

Cada página lida traz uma nova faceta dos sofrimentos do jovem padre, que tem a sociedade maranhense de sua época, mesquinha e preconceituosa, como a grande antagonista. Novamente, os personagens não aparecem na obra por acaso, todos são essenciais para o desenrolar da história, que já apresenta seu desfecho nas primeiras páginas do livro.

Embora as narrativas sejam diferentes (ambas encantadoras), pode-se perceber claramente as semelhanças estilísticos-semânticas que enlaçam os dois romances. Em alguns casos, uma situação de um livro apresenta correspondência no outro. É o caso, por exemplo, da desestruturação familiar e das descrições da morte. Algumas personagens também parecem uma imagem especular de outras, como Padre Tarjet e Padre Francisco, que parecem a mesma pessoa em livros diferentes.

No entanto, essas recorrências não empobrecem os romances de João Mohana, e sim provam sua capacidade de manusear as características de certos grupos de forma coerente, já que os dois padres e as duas famílias, nos livros, são representações de dois sistemas complementares, porém antagônicos. Quanto à morte, presença marcante nos dois livros, é em suas descrições que o escritor atinge a plenitude de sua força narrativa. A agonia do pai de Bárbara, da criança natimorta, a morte da mãe de Eyder e o falecimento do protagonista de O Outro Caminho são páginas antológicas em que temos a junção perfeita do padre, do médico e do escritor João Mohana, cada um dando sua contribuição para que as cenas fossem narradas de maneira exemplar.

Outro ponto bastante denso da obra de Mohana é a sua busca de verossimilhança, chegando ao ponto de o leitor menos acostumado com seu estilo questionar-se sobre a existência ou não de Bárbara Sena, bem como o leva a acreditar que Eyder e João Mohana sejam a mesma pessoa, esquecendo-se de que tudo não passa de ficção.

Em verdade, os dois livros trazem lições de vida. No final, todos estão entregues às mãos do Criador e é Ele quem decide o futuro. Ao leitor resta a sensação de vazio e a certeza de que todos nós vivemos numa eterna tempestade, sempre com a angústia de querer saber como seria a vida, caso tivéssemos seguido por outro caminho, eis a lição do padre, do médico  e do humanista João Mohana, seguramente um dos maiores analistas da alma humana no século XX,

 Leia outra homenagem a João Mohana clicando AQUI

NHOZINHO: O POETA DA ESCULTURA

 Novos artigos de segunda #42 Fonte da Imagem: Arquivo do autor NHOZINHO: O POETA DA ESCULTURA José Neres                Geralmente fi...