segunda-feira, 14 de abril de 2025

A ARTE DO MICROCONTO

 Novos artigos de segunda #27



A ARTE DO MICROCONTO

José Neres


Ao ler um microconto, alguém pode até imaginar: “Ah, isso é fácil! Basta escrever uma história bem curtinha e pronto!” Mas não é bem assim…

O microconto exige que o escritor retire do texto toda e qualquer adiposidade verbal, que ele condense em poucas palavras toda uma narrativa que poderia ser contada com detalhes em muitas linhas ou páginas.

Enquanto os escritores em geral costumam escrever para depois irem eliminando as palavras desnecessárias, o microcontista corta as palavras antes mesmo de escrevê-las, o que torna a tarefa ainda mais complexa.

Na elaboração de um microconto, o autor não tem espaço para desenvolver alguns elementos como espaço, tempo ou até mesmo a personagem. Desse modo, é preciso apostar no imediatismo das ações e capturar cada cena como se utilizasse o recurso de um flash que nunca mais se repetirá.

É isso o que acontece, por exemplo, no microconto intitulado O Prudente, de José Renato Amorim (@jramorim.autor), reproduzido a seguir:


Acendeu o fósforo para ver se tinha gasolina no tanque. Tinha!


Conforme pode ser visto, em textos assim, cada palavra é essencial e cabe ao leitor preencher as lacunas com suas próprias expectativas e experiências prévias. O que veio antes e o que virá depois do evento perdem seu interesse diante do impacto causado pelo instantâneo ficcional capturado pelo autor. Até mesmo a escolha lexical com suas respectivas implicações na interpretação do texto, tem importância. Dessa forma, os fonemas sibilantes e fricativos do início do conto são substituídos paulatinamente pela hipótese de uma explosão a partir do uso das consoantes oclusivas. O resultado é deveras interessante.

Os autores de microcontos geralmente precisam também trabalhar com a duplicidade das palavras e com a agilidade das ações para conseguir o efeito necessário à concretização da ideia. Um dos contos exemplares nesse sentido é o de Lygia Fagundes Telles, no qual o duplo sentido da palavra leva o autor a se dividir entre a reflexão e o humor.


Fui me confessar ao mar. O que ele disse? 

Nada.


O papel dos sinais de pontuação em um microconto também pode ser decisivo para a intelecção da mensagem do texto. Dalton Trevisan, um dos mestres no uso desses recursos estilísticos, silenciosamente, sempre enfatizou a necessidade de o leitor compreender a colocação dos símbolos gráficos para o desenvolvimento da narrativa. Como ocorreu no texto abaixo, retirado do livro 101 Ais.


Na cama, diz o marido:

 - Você é gorda, sim. Mas é limpa.

- …

- Você é feia, certo? Mas é de graça.


O uso das reticências, da interrogação e dos pontos finais escondem muito mais do que pausas ou inflexões das vozes das personagens. Expressam uma afirmação enfática, a busca de concordância para a ideia compartilhada, a exposição de preferências estéticas, a possível condição financeira do homem e muitas outras informações que podem ser resgatadas pelo ato da leitura não apenas das palavras, mas também pela ênfase dada em cada parada estratégica. O silêncio assustado da mulher, representado pelo uso das reticências, é bastante eloquente e aprofunda a escala de absurdos ditos em poucas linhas.

Marcos Fábio Belo Matos (@marcosfabiomatos) é outro escritor que sempre apostou no minimalismo do texto escrito, com as possibilidades abertas para diversas interpretações. Em alguns de seus contos, o prosador deixa seus leitores no limiar da interpretação. No microconto a seguir, a chave para a leitura está na escolha do título - algo muito comum nos microcontos, o que faz com que a(s) palavra(s) do título se torne(m) mais um elemento interpretativo a ajudar o texto a se tornar ainda mais sintético.


Separação 

No carro, a filha voltou para o banco da frente.


A vaguidão proposital deixa o leitor escolher se quem está a dirigir o carro é o pai ou mãe, pois, de qualquer modo, o interesse recai no ato da separação e no local que agora é ocupado por outra pessoa, também da família, mas que estabelece uma nova possibilidade de direcionamento. De alguma forma, a presença da filha no banco da frente pode alterar a direção e o sentido do carro e do ato de dirigir. Ao mesmo tempo lembra que na parte de trás - simbologia do passado - deve haver um lugar vazio.

Um microconto deve ser capaz de impactar o leitor, não apenas pela brevidade, mas também pelo efeito das imagens congeladas a partir de palavras e de olhares. A composição às vezes se assemelha a uma aquarela que recebeu algum tipo de aditivo sinestésico. Então, o autor, mesmo utilizando um número limitado de palavras, consegue impregnar o texto de cores, cheiros, sons e emoções. O que não é fácil.

Nessa ideia de isolar trechos de uma escala de ações e transformá-los em frames de conturbadas vivências, o escritor Rinaldo de Fernandes (@rinaldodefernandes), outro grande mestre da narrativa curta, conseguiu em poucas palavras reproduzir uma comovente cena que necessitou de apenas três verbos (dois no presente e um no pretérito perfeito do indicativo) para demonstrar a repetição de uma ação que ocorre em looping e a certeza de um fato imutável. O título do conto - Água de cheirar - não traz uma função elucidativa, mas ajuda a enriquecer o conteúdo poético da imagem verbal.


Todo fim de tarde, o cachorro vem, cheira o rio onde o dono morreu.


Escrever microcontos é uma arte. Não é fácil transformar histórias em pequenas peças de ourivesaria verbal. Também não é fácil ler microcontos. Esse tipo de leitura exige que se enxergue além da evidência das palavras e que se mergulhe em um mar de possibilidades. 

Termino este breve artigo com a reprodução de um microconto de Cíntia Moscovich, autora que nos ensina sobre a instabilidade e a efemeridade da vida em apenas duas frases declarativas.


Uma vida inteira pela frente. O tiro veio por trás.

2 comentários:

MONTELLO, UM FRAGMENTO DE MINHA TRAJETÓRIA

 Novos artigos de segunda #28 Fonte da imagem: o autor deste artigo MONTELLO, UM FRAGMENTO DE MINHA TRAJETÓRIA  José Neres  Josué Montello e...