sexta-feira, 27 de junho de 2025

UMA MANHÃ COM ESTELA

 ESTELA: MAIS UMA ESTRELA EM MINHA VIDA

José Neres 

Fonte da imagem: reprodução da capa do livro. Arquivo pessoal


Já faz um bom tempo que ela chegou aqui a minha casa. Uns oito a dez meses, acredito. Pequena. Discreta. Silenciosa e pensativa, ela no começo passou quase despercebida. Ficou ali em um cantinho e de lá observava toda a movimentação. Às vezes, com sua voz pacata, ela me chamava. Preciso contar-lhe minha história. Me ouça, por favor. Mas, no meio de tanto barulho, eu acabava deixando de atender àquele grito de socorro…

Mas hoje foi diferente. Quando me preparava para sair, ela deu gravidade a sua voz e disse me leva. Preciso conversar um pouco. Ou você vai ser como tantos outros que me ignoraram durante minha vida. Confesso que me senti meio envergonhado e a convidei para sair. Vamos passear um pouco. Preciso de companhia para um momento ocioso que terei. Você tem a manhã inteira para me contar sua história. Não me decepcione.

Passamos boa parte da manhã juntos. Educadamente, ela se apresentou: Meu nome é Estela, quando eu era mais nova, pensei em ser filósofa, mesmo sem saber o que vem a ser a Filosofia. O nome dela eu já conhecia. Não foi novidade para mim. Mas, depois, calmamente, ela começou a falar-me sobre sua mãe, seu irmão, sua avó e sobre a morte. Sim a morte, esse tema que tanta gente evita, mas que sempre faz e fará parte de nossa trajetória.

Estela traz na sua pele as marcas de nossos antepassados escravizados. Traz nos seus cabelos crespos os fios nem sempre bem contados de nossas origens. Traz em seu histórico de vida todo um conjunto de marcas das tantas violências que sofreu. Traz em seu olhar todas as discriminações que sofreu por conta de sua pele, de seu cabelo e de condições sociais. Ela me falou de fome, da mãe adoentada, do pai ausente, de sua vida em Porto Alegre, de sua viagem para o Rio de Janeiro e de todas as transformações por que passou em tão pouco tempo. 

Ela é uma menina com apenas dezesseis anos, cuja vida, ambientada na época de eleição de Fernando Collor de Mello, teve uma brusca aceleração e que rapidamente foi descobrindo o próprio corpo, os próprios desejos e as dores que suas decisões lhe trouxeram. Ela saiu da condição de menina-menina para menina-moça e menina-mulher em um abrir e fechar de olhos. Mas o mundo não teve muita paciência para com essas mudanças. 

Ela se abriu comigo. Contou-me toda a sua história de vida e me mostrou que é possível fazer perguntas sem usar interrogações. Só me fez um pedido: por favor não faça aquilo que os jovens de hoje chamam de “spoiler”. Prefiro que cada pessoa descubra por si mesma minha trajetória, meus percalços, minha vitórias e minhas dúvidas. 

No final da manhã, ela me agradeceu pela companhia e pelos momentos que dispensei a ela. Disse que queria voltar para o lugar onde passou esses últimos meses e que estava satisfeita em contar sua história para alguém. Voltou para lá e agora está descansando, com um sorriso de alívio estampado em seu sofrido rosto.

Quem quiser conhecer em detalhes a vida da jovem Estela, deve ler o livro Estela sem Deus (Companhia das Letras, 2022, 181 páginas), romance escrito pelo talentoso Jeferson Tenório.

De minha parte, posso dizer que tive uma bela manhã ao lado de Estela. Vale a pena conhecer esse fragmento tão sofrido de uma vida que pode estar corporificada em qualquer esquina de nosso país.

#RomanceBrasileiro #LiteraturaBrasileira #JeffersonTenorio #LiteraturaContemporanea

Um comentário:

  1. É incrível como você descreve Estela com suspense e carinho respeitosos. Também admiro o seu dom de nos indicar obras literárias.

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