quarta-feira, 29 de outubro de 2025

JOSÉ CHAGAS, 101 ANOS

JOSÉ CHAGAS, 101 ANOS

José Neres 

Breve conversa com José Chagas, em 2006
Fonte: arquivo do autor


Hoje, 29 de outubro de 2025, lembramos a passagem do 101° ano do nascimento de José Chagas, o poeta e cronista paraibano que adotou o Maranhão como segunda terra e que escreveu inúmeros textos - em prosa e em verso - sobre o Estado no qual viveu por décadas.

Aproveito a data para lembrar alguns episódios que de alguma forma interligam minha história de vida com a trajetória do grandioso José Chagas, de quem sou admirador.


1 - Hoje é dia de…

Sempre acordei cedo. Mas, durante muitos anos, despertar aos sábado tinha um sabor especial. Era o dia em que saía, no jornal O Estado do Maranhão, a coluna Hoje é dia de José Chagas. Todos os ocupantes da coluna nos demais dias eram muito bons. Mas os textos de Chagas tinham algo de diferente. Ele, despretensiosamente, fazia o leitor ter a doce ilusão de imaginar que escrever era fácil. Sua crônicas traziam uma mescla bem equilibrada de crítica social e poeticidade. 

Acredito que muitas pessoas também comungavam desse “vício” de ler Chagas aos sábados.


2 - Chagas em pessoa

Em 2005, ganhei, no Concurso Cidade de São Luís, o Prêmio Odylo Costa, filho, com o livro Restos de Vidas Perdidas. Como parte da premiação havia a publicação do livro e o lançamento coletivo das obras. 

Na tarde/noite do lançamento, lá estava José Chagas quase ao meu lado, na área destinada aos escritores Félix Alberto Lima e Manoel dos Santos Neto, que venceram o Prêmio De Jornalismo com o livro-reportagem “Chagas em Pessoa”.

Foi também, naquele momento, meu primeiro contato com Félix, que hoje é meu amigo e confrade na AML.


3 - O primeiro contato 

A primeira vez que estive frente a frente com José Chagas foi no lançamento de de um livro do poeta Luís Augusto Cassas.

Ao ser apresentado a ele, comentei que admirava sua obra e que o considerava um dos grandes poetas do Brasil. Ele deu um leve sorriso e comentou: “Não sou bem um poeta. Sempre fui um lavrador. Na Paraíba, eu lavrava a terra para sobreviver. No Maranhão encontrei uma terra boa. Deixei de lavrar a terra e comecei a lavrar palavras. Hoje não sou mais um lavrador. Tornei-me um pa-lavrador”.

Era realmente um sábio e um grande cultor das palavras. 


4 - Após uma palestra

Fui convidado, pela Academia Maranhense de Letras, a proferir a palestra sobre o centenário de José Chagas. Diante se uma Casa lotada, falei por mais de uma hora sobre a vida e abra do auto de “Os Canhões do Silêncio

Após a sessão de perguntas, um cidadão chegou para mim e disse que estava impressionado com a qualidade literária de Chagas, a quem admirava desde muito tempo. A pessoa só não sabia que Chagas também escrevia livros. Só conhecia suas toadas de bumba-meu-boi. Claramente aquele “fã” havia confundido o poeta Chagas, com o também grandioso cantador Chagas.

Acontece!


5 - Na qualificação…

Minha tese de doutorado trata sobre dois aspectos pouco explorados da poesia de José Chagas: sua relação com a sustentabilidade e com o meio ambiente.

Um dos membros da banca de qualificação - que não conhecia a poesia de Chagas, assim como todos os demais - encheu o poeta de elogios e disse: “Em determinado momento, após acabar de ler seu trabalho, fiquei com minha esposa na varanda da casa e ficamos até tarde lendo os poemas de José Chagas e nos impressionamos com a sensibilidade poética dele”. O professor, após um longo suspiro, concluiu: “Como é que o Brasil ainda não conhece esse poeta?”

Confesso que também não sei… mas tenho minhas suspeitas…

****

Hoje, depois de mais de uma década de seu falecimento, sempre que leio as crônicas e os poemas de Chagas fico com uma dúvida: como ele retrataria os dias atuais em sua obra? 

Mais uma questão sem resposta.

domingo, 26 de outubro de 2025

O ROMANCE DE JOÃO CLÍMACO LOBATO

 Novos artigos de segunda #54

 


ELE ESTÁ DE VOLTA

A respeito do romance “O Diabo”, de João Clímaco Lobato

José Neres

 

Imagine que você seja uma pessoa financeiramente bem-sucedida, que tenha uma família estabilizada e aparentemente seja considerado por todos como uma pessoa do bem. Contudo, um antigo segredo pode vir à tona e pôr todo o seu histórico de vida a perder. O pior de tudo é que, certo dia, ao voltar para casa, você ouve um “psiu” e, a seguir, uma voz estranha que parece vir das profundezas da terra chama pelo seu nome seguidas vezes...

Para piorar a situação, seguidos episódios ocorridos em sua fazenda levam você a acreditar que aquele antigo segredo esteja prestes a ser revelado e que possivelmente o próprio Diabo esteja no encalço dos envolvidos no sombrio evento que todos julgavam esquecido. Qual seria a solução? Reunir a família e tentar encontrar um meio de sepultar o passado e de livrar-se do Diabo que tanto incomoda no presente e que pode pôr em risco o próprio futuro pecuniário da família.

Temos, nas linhas acima, em poucas palavras as diretrizes gerais do romance “O Diabo”, publicado em 1856, pelo escritor maranhense João Clímaco Lobato (1829-1897) e que será relançado – em e-book – na próxima quinta-feira, 30.10.2025, às 18:00 horas na Casa de Cultura Josué Montello.

O livro traz uma abordagem bastante interessante sobre algumas superstições que norteiam a vida das pessoas, tocando também em assuntos como casamentos arranjados, amores contrariados, busca de aceitação, remorso, perdas familiares, anticlericalismo e tantos outros que se entrecruzam ao longo da narrativa para compor o enredo da história.

O autor, nesse romance, optou pela narrativa em linha cronológica entremeada de alguns recuos no tempo, a fim de elucidar questões que servem como motivação para as ações das personagens. Tecendo uma mescla entre os elementos característicos do humor e pitadas dos elementos do estilo gótico. A presença/ausência do Diabo ao longo da narrativa oferece ao leitor uma imersão na atmosfera de mistério e de suspense, mas sem deixar de lado uma necessária crítica social, principalmente aos políticos da época.

Para ajudar a compor o núcleo das personagens, João Clímaco Lobato recorreu à presença de um frei glutão e preguiçoso, de uma mulher que sempre deseja se colocar como o centro das atenções, de um homem que adora receitar beberagens para os conhecidos e de uma jovem que desconhece o passado da família e de um rapaz com limitações cognitivas. Possivelmente o leitor irá perceber uma quantidade exagerada de desmaios ao longo da história e de situações aparentemente desarticuladas, mas isso não é tão relevante no cômputo geral da obra, podendo inclusive servir para imprimir ao romance uma aura de mistério entremeado por um humor ácido.

Esta nova edição de O Diabo foi elaborada pelo GELMA - Grupo de Estudos em Literatura Maranhense, que tem como um dos objetivos trazer de volta ao público leitor algumas obras que não são muito conhecidas e que nem sempre estão disponíveis na ortografia modernizada. A edição traz uma apresentação escrita pelo professor Mestre Mauro Cezar Borges, e, como posfácio um artigo publicado no Diário do Maranhão, em maio de 1856, ou seja, logo após a publicação da primeira edição do romance. Além disso, o e-book é fartamente ilustrado com imagens produzidas por Inteligência Artificial e que servem para aproximar os novos leitores da história.

Logo após a cerimônia de lançamento – com a presença dos organizadores Dino Cavalcante e Mauro Cezar Vieira, o link do livro virtual será disponibilizado – sem custos – para o público interessado nesse valoroso trabalho. Vale a pena comparecer ao evento.

 

LOCAL: Casa de Cultura Josué Montello (Rua das Hortas – Centro – São Luís – Maranhão)

DATA: 30 de outubro de 2025

HORÁRIO: 18:00 Horas

ENTRADA FRANCA



domingo, 19 de outubro de 2025

A CORAGEM DO SILÊNCIO

Novos artigos de segunda # 53

Imagem criada com auxílio de Inteligência Artificial

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A CORAGEM DO SILÊNCIO

José Neres

 

Gosto sempre de pensar nas relações humanas e no uso da linguagem como forma de aproximar as pessoas e de evitar conflitos desnecessários. Acredito que muitas vezes não falar o que pensamos pode ser um bom recurso para não ferir as pessoas e até de preservar nossa saúde mental.

Mas nem todos pensam assim. Muitas pessoas acreditam piamente que o livre direito de manifestação é um passaporte para falar o que quiser e, caso alguém pense de modo contrário, esse alguém deverá ser combatido e silenciado.

A regra deveria ser pensar em tudo o que se vai falar e nem sempre falar tudo o que se pensa. Isso ajudaria muito!!!

Podemos até (às vezes) ter o controle dos textos produzidos, porém dificilmente teremos como controlar a recepção de nossas palavras. Quando produzimos uma frase, partimos de nossas concepções de vida, de nossas ideologias, de nossas sensibilidades momentâneas e de nossos objetivos preconcebidos. Os receptores, por sua vez, utilizam suas próprias concepções de mundo e suas singularidades na hora da recepção dos textos. Essa pode ser uma das origens dos conflitos verbais...

No fundo, pode ser que ninguém esteja errado, que ninguém tenha má intenção, mas uma confusão pode acabar de ter sido criada.

Recentemente presenciei uma cena: Uma pessoa disse que estava a preparar um grande evento e outra se propôs a ajudá-la: “Não precisa. Você é branca e não quero gente branca por perto nesse evento”.  A outra pessoa foi sábia ao silenciar. O silêncio evitou um possível conflito verbal, mas possivelmente deixou uma chaga aberta. Será que haverá a mesma disposição para ajudar na próxima vez? Sempre existe uma próxima vez!

Acompanhando um congresso pela internet, vi e ouvi as protocolares apresentações dos membros da mesa. Um professor é apresentado e é mencionado o seu cargo de chefia. Minutos depois, uma outra participante, ao fazer os cumprimentos aos membros da mesa, fixou o olhar naquele professor e disse lamentar muito que aquele cargo estivesse sendo ocupado por um homem e concluiu dizendo que depois iriam conversar sobre isso. O detalhe é que a mesa discutia a necessidade de respeitar as diferenças... O ato de flagrante incivilidade para com o colega acabou sendo eclipsado pelas inteligentes falas das demais pessoas. Creio que algumas nem mesmo chegaram a perceber a infeliz frase.

Em outro momento, durante uma reunião, alguém se julgou preterido por não ter sido avisado sobre a hipotética presença de uma autoridade. De maneira descortês e sem usar filtros, a pessoa saiu vociferando palavrões e impropérios. Todos na sala baixaram a cabeça e esperaram os ânimos serenarem. Dias depois, pediu desculpas a todos e lamentou pelo ocorrido. Todos compactuaram em não mais tocar no assunto. E paz voltou a reinar no ambiente! Mas será que as ofensas gratuitas não continuam ecoando na memória das pessoas? Difícil dizer!

Em outro momento, um rapaz bastante solícito se ofereceu para ajudar uma senhora que estava em dificuldade com um aparato tecnológico. Ela, no lugar de agradecer, disse: "Esses homens se aproveitam de todos os momentos para mostrar às pessoas que algumas mulheres têm dificuldade com as tecnologias". E arrematou: "os homens dizem que são gentis com as mulheres, mas basta ver os índices de feminicídio para se perceber a falsidade". Comentários totalmente desnecessários. O rapaz saiu cabisbaixo e sem silêncio. Mas antes resolveu o problema. Não sei se da próxima vez ele será tão gentil e solícito.

Calar-se diante de uma situação constrangedora será um ato de coragem ou de covardia? Acredito que cada pessoa deva ter sua opinião formada e que todos os problemas podem ser discutidos de forma civilizada, com base em uma boa conversa.

De minha parte, prefiro ver a comunicação como ponte que liga duas ou mais pessoas. No entanto, conheço um monte de gente que faz das palavras uma barreira às vezes intransponível. Tais pessoas costumam acreditar que ouvir e calar são atitudes covardes.

Para evitar problemas, paro por aqui e silencio.


segunda-feira, 13 de outubro de 2025

NOTINHAS ALEATÓRIAS

 Novos artigos de segunda #52



Fonte da imagem: arquivo do autor 

 

ALGUMAS COISINHAS QUE TENHO APRENDIDO ULTIMAMENTE 😂 

José Neres 


Para mim, viver e aprender são duas situações necessárias e simultâneas. É importante aprender algo todos os dias. Um dia sem algum tipo de aprendizagem é um dia perdido.

Aprendemos com as ações e com as observações cotidianas. Tenho percebido, então, alguns detalhes aparentemente simples que compartilho abaixo com vocês, meus poucos, porém significativos leitores e leitoras.


As pessoas não gostam de textos longos

Tenho visto que as pessoas costumam “pular” os textos mais longos e/ou mais complexos. 

Pode ser pressa, preguiça de pensar ou simplesmente falta de costume, mas os textos com mais do que tantas linhas costumam ser desprezados e abandonados no meio do caminho.

Ah, atualmente as pessoas fogem dos textos curtos também. Já é costume encontrar diversas pessoas silenciosamente mergulhadas na beleza das telas e ignorando plenamente quem estiver ao seu lado. 


As pessoas têm dificuldade em interpretar textos 

Talvez por falta de hábito de leitura ou por mera desatenção, várias pessoas não conseguem interpretar o que foi lido. 

Um dia desses, escrevi no enunciado de uma questão: “Escolha DUAS das cinco imagens abaixo para elaborar um texto descritivo”.

Imediatamente ouvi: “É para escolher quantas imagens mesmo?”, “É para fazer o que com as imagens”, posso escolher apenas uma imagem?”, “Que tipo de texto é para elaborar?”... Ou seja, as pessoas não compreenderam a frase. Uma pena!!!


Algumas pessoas odeiam livros físicos

Gosto de oferecer livros para pessoas queridas. Mas, nas últimas duas semanas, recebi diversos “nãos”. Uma pessoa disse que o livro era muito pesado e que não caberia em sua bolsa. Outra disse, ao receber o livro: “Vou dar para alguém que gosta de leitura, eu não gosto de ler.” Houve também quem dissesse que receber livros era coisa de gente rica. O bom mesmo, é uma rodinha de pagode.”

Cada coisa!!!


Postagens de amigos raramente são compartilhadas

Aquela informação “Mensagem compartilhada com frequência” quase sempre só aparece em uma publicação que tenha origem nas postagens dos chamados influenciadores. As dos colegas, por mais interessantes que sejam, caem no esquecimento. É sempre importante seguir essa regra estratégica: enviar o link/convite para umas mil pessoas na esperança de conseguir 10 ou 15 leitores. Nem sempre se alcança esse número!!!


Grupos

Os famosos grupos de aplicativos de mensagens instantâneas constituem uma forma bem moderna (nem tanto!) que as pessoas encontraram para terem certeza de que são ignoradas tanto no mundo físico quanto no virtual.


Lançamentos e shows

Conheço um monte de pessoas que, nas redes sociais, defendem a cultura local: “É importante valorizar os artistas locais!”, “Todos devem se unir pelo bem de nossa cultura!!!”...

Porém raramente vejo essas pessoas participando dos lançamentos dos escritores e/ou prestigiando as apresentações de nossos artistas. 

Alguns, quando aparecem, é apenas para tirar uma selfie, postar nas redes  e depois reclamar.


Convites

Há muito tempo não convido colegas, amigos e conhecidos para palestras e lançamentos de livros. Já descobri que justamente naquela data marcada e naquele horário agendado as pessoas têm algum compromisso inadiável.

Além de tudo, não importa o lugar do evento. Ele está sempre longe dos convidados e o acesso parece problemático.l

E as pessoas que garantem que irão comparecer são as que mais aumentam as probabilidades de esvaziamento dos eventos.


Não importa o preço 

Geralmente, nos lançamentos de livros as pessoas reclamam (de modo quase sempre discreto) do preço cobrado. Algumas chegam para o/a autor(a) e vão logo perguntando: “Cadê o meu?”, Vou ter que pagar para ler teu livro?”, “Quando vai me mandar o PDF? Um total desrespeito com quem gastou seu tempo, investiu seu dinheiro e alimentou o sonho de publicar seu trabalho.

Ah, e tem também aqueles que só vão pelo buffet, que tem de ser de primeira, senão...

Interessante que… bem, deixa para lá. Não é da nossa conta…


Só espero que os itens acima não sirvam para você que está lendo agora este texto. Enviei o link para mais de mil pessoas, mas dificilmente chegarei aos quinze acessos.

Então, obrigado a você que chegou até aqui.

Obrigado mesmo!

SOBRE OS CONTOS DE DESAMOR

 Novos artigos de segunda #51

Fonte da imagem: arquivo do autor 


SOBRE OS CONTOS DE DESAMOR

José Neres 


Certa vez, Vinícius de Moraes afirmou que “a vida é a arte do encontro, embora haja tanto desencontro pela vida”. É verdade, pelo menos em parte. No somatório geral entre encontros e desencontros dificilmente saberemos o resultado geral de nossa equação. Não importa! Recorrendo a outro grande artista brasileiro, podemos nos consolar dizendo, de forma adaptada, que se ganhei ou se perdi, “o importante é que emoções eu vivi.”

Escritora experiente e atenta observadora das realidades circundantes, a professora, pesquisadora, contista e cronista Ceres Costa Fernandes há muito tempo já vem percebendo que esses encontros e desencontros tão comuns no dia a dia podem dar margens à elaboração de boas histórias. Desse modo, após recolher diversos textos  escritos em momentos variados, acaba de chegar às mãos dos leitores o livro “Contos de Desamor” (Edições AML, 2025, 168 páginas).

Dona de um estilo leve e que mescla observações da realidade com refinados e sutis toques de humor, Ceres Costa Fernandes demonstra com seus textos que é possível construir personagens que chamem a atenção do leitor sem a necessidade de recorrer a baixarias, aos exageros das diversas violências ou a desnecessários detalhes escatológicos. Os contos do livro podem ser lidos sem reservas por pessoas das mais variadas faixas etárias.

As trinta narrativas que compõem o livro dialogam entre si pelo aspecto da temática que remete à incompletude das relações amorosas, mas não à ausência do Amor. Afinal só podemos falar em desamor se antes houver pelo menos a insinuação de um amor, mesmo que incerto ou mal compreendido. É o que ocorre, por exemplo, no conto “Amigo”, no qual os gostos e desejos das personagens vão se modificando e mostrando quão complexas podem ser as diversas facetas de uma relação amorosa.

As desconfianças, frutos dos desamores que um dia se travestiram de amor, estão presentes em todo o livro, mostrando que as chamadas normalidades dependem muito da situação em que os casais e possíveis desafetos estão inseridos. Voltando literariamente no tempo, é possível divertir-se com a tentativa frustrada de duas damas da alta sociedade em imiscuir-se fantasiadas em um baile carnavalesco onde tudo poderia acontecer.

Por falar em carnaval, é nesse momento momesco que Candinho, personagem de “Amor no Carnaval” vive uma marcante, rápida e quase sobrenatural aventura amorosa e que o icônico Cardosinho se vê em maus lençois ao ser flagrado pela feroz esposa fantasiado de fofão em plena folia Ludovicense.

Além de narrar histórias, Ceres Costa Fernandes também aproveita seus textos para levar o leitor para diversos passeios no tempo e na paisagem histórica da cidade, promovendo um resgate literário de um tempo que já se foi, mas que pode voltar diversas vezes nas páginas de uma ficção fluida e agradável.

No meio de tantos desencontros, marcar um encontro com a límpida prosa de Ceres Costa Fernandes pode ser um alento para enfrentar esses tempos modernos e difíceis. E, depois de alguns minutos mergulhado nos contos de desamor, certamente o amor pela literatura tenderá a se tornar eterno.


Os escritores Ceres Costa Fernandes e José Ewerton Neto, na noite do lançamento do livro 


sábado, 4 de outubro de 2025

SANTA INÊS E PINDARÉ

 Um breve passeio

 
Sempre que vou a uma cidade, tenho a mania de escrever algum texto sobre o lugar que me acolheu.

Desta vez, convidado pelo poeta e professor Paulo Rodrigues, fui fazer uma breve palestra sobre literatura para os alunos do Campus da Universidade Estadual do Maranhão, em Santa Inês, na XIII Semana de Letras e Encontro Nacional de Línguas e Literaturas no Pindaré.

Pela noite, voltei a Pindaré Mirim para um breve passeio sem compromisso previamente agendado.

Além da carinhosa companhia de Paulo Rodrigues e de sua esposa Larissa, também tive bons momentos de confraternização poética com Luiza Cantanhêde, Evilásio Júnior,  Carlos Vinhort, Linda Barros, Maura Luza, Antônio Coelho, Rilnete Melo e seu esposo Pedro.

São momentos que fazem a diferença em nossa vida.

Abaixo temos os textos que escrevemos sobre as cidades 

sexta-feira, 26 de setembro de 2025

20 HAI-CAIS


Imagem criada com auxílio de Inteligência Artificial 


 20 HAI-CAIS
(Quase) ao estilo de Guilherme de Almeida

Gosto das formas fixas, sejam elas sonetos, trioletos, rondós, trovas ou hai-cais. 

Para mim, é sempre um desafio colocar ideias dentro de um espaço previamente determinado por alguém que nem conheço. No final, fica sempre a sensação de haver tentado sem ter conseguido atingir os objetivos. Mas a teimosia fala mais alto...

Os livros didáticos de minha juventude contribuiram para moldar um pouco meu gosto literário. Foi nesses compêndios que tive os primeiros contatos com Quintana, Drummond, Gullar, Coralina, Fernando Sabino, Lourenço Diaféria, Stanislaw Ponte Preta, Adélia e tantos outros nomes de nossa literatura. Como era bom explorar o conteúdo daqueles livros!

Foi neles também que conheci Guilherme de Almeida, o poeta e tradutor modernista que transpirava todos os estilos clássicos. 

No meu livro da antiga quinta série estavam reproduzidos dois poemas dele: "Você", quase uma ode romântica, e "A rua das Rimas", um belo experimento com as palavras. Milhares de vezes passei os olhos por aqueles textos. Até cheguei a decorar alguns trechos...

Mais tarde, em plena adolescência, entrei em contato também com seus hai-cais, pequenas obras de ourivesaria literária, às vezes subestimada e relegadas a um plano inferior. Nunca entenderei isso!

Guilherme de Almeida praticamente reinventou o formato do hai-cai no Brasil. Ele manteve a ideia dos três versos e acrescentou um rígido esquema rímico no qual o primeiro verso rima com o terceiro (ambos com cinco sílabas poéticas) e, no segundo, a segunda sílaba rima internamente com a sétima, mantendo também uma analogia com a natureza e um diálogo como um modo filosófico e reflexivo de ver a vida. Transcrevo o exemplo abaixo, para situar quem achou complicado:

INFÂNCIA 

Um gosto de amora
comida com sol. A vida
chamava-se "Agora".
(Guilherme de Almeida)

Claro que jamais consegui ou conseguirei imprimir em três versos a beleza imagética perpetrada por Guilherme de Almeida, contudo, como disse antes, sempre fica o desfio de tentar.

Hoje, nesta última sexta-feira de setembro, enquanto me desvencilhar a de algumas tarefas burocráticas, resolvi brincar com as palavras e ao mesmo tempo homenagear algumas pessoas que sempre me incentivaram a continuar produzindo textos (qualidade já é outra história!) 

Seguem os textos e a desculpas por associar pessoas tão talentosas a versos tão simplórios. Mil perdões!



I - INSPIRAÇÃO 

(Para Marcos Fábio Belo Matos)

Do aroma da rosa
Um dia algo principia
Daí nasce a prosa.


II - DISFAGIA
(Para Silvana Meneses)

O sabor da menta
Dessabe na boca que abre…
Mas não alimenta…


III - DESCUIDO
(Para Antonio Ailton)

Só sobrou um retalho
Da maçã.. pela manhã,
Tudo é ato falho.


IV - COLHEITA
(Para Laura Amélia Damous)

Minha primavera
Se constrói só no que dói 
Sou fruto da espera…


V - NATUREZA MORTA
(Para Natan Campos)

Na mesa, um limão…
Nas crianças, a esperança…
Eu, sem solução…


VI - CARPE DIEM
(Para Dino Cavalcante)

A flor do alecrim
Nessa idade traz saudade
Só falta eu em mim.


VII - PAISAGEM
(Para Linda Barros)

Um jardim sem flor
Me mina e me contamina 
É cura com dor…


VIII - INFINITUDE 
(Para Bioque Mesito e Nara)

Paixão se escancara
Se na vida está envolvida
Uma doce Nara.


IX - PARADOXO
(Para Ceres Costa Fernandes)

Que situação!
Em um mundo tão imundo
Bate bom coração!


X - TREINAMENTO 
(Para Luiza Cantanhêde)

No seio da terra
A saúva traça a curva
Onde a dor enterra.


XI - AMPULHETA
(Para Paulo Rodrigues)

Todo rio corre 
Para no mar desaguar…
Nosso tempo escorre…


XII - PASSAGEM
(A Viriato Gaspar, em memória)

A vida foi ato
Pelo ir e pelo vir…
É mais que retrato…


XIII - LACRIMAR
(Para Helena Mendes)

Lágrima não bóia 
No mar sempre a lastimar
Seja aqui ou em Tróia.


XIV - INSTANTÂNEO
(Para Mhario Lincoln)

Diante do fato,
No frio ou à margem do rio 
Tire-se o retrato!


XV - ENDEREÇO 
(Para Rogério Rocha)

A palavra aflita
Ceia meia-noite e meia...
Não dorme, dormita.


XVI - RECADO 
(Para Ana Maria França Cutrim)

A flor do hibisco
Morta, me avisa na porta:
Sofrer é um risco...


XVII - CÁLCULO DIÁRIO 
(Para José Ewerton Neto)

Lápis traça reta
A raiz que nunca me diz
A dose correta..


XVIII - JARDIM
(Para Alice Moraes)

Só uma dor vive
No jardim que habita em mim:
A flor que não tive!


XIX - BIOBIBLIOTECA 
(Para Joseane Souza)

Vida é livro aberto
Com mágicas dez mil páginas 
E leitor incerto.


XX - SAPERE AUDE
(Para Ruy Pontes)

Vã filosofia 
Disfarça o que o mundo traça...
É monotonia!


sábado, 20 de setembro de 2025

UM TESOURO ESQUECIDO

 Novos artigos de segunda #50

Fonte da imagem: internet 


ELY CARLOS - UM TESOURO ESQUECIDO

José Neres 


O Começo…


Há cerca de um ano, postei aqui neste blog um artigo comentando sobre aquelas músicas que teimam em invadir nossa mente (leia aqui o artigo) e que nos acompanham por todos os lugares, mesmo contra a nossa vontade.

Volto, então, para um passado muito mais distante que alguns meses. De repente, vejo-me criança, com uns oito anos de idade, em Brasília, esperando o retorno de meu padrinho e pai de criação, que, pelo uma vez por mês trazia para nossa casa um LP (os leitores mais jovens talvez tenham dificuldade para compreender isso) e algum livro.

Mesmo distante de minha terra natal, sempre estive ligado a ela pela música de nossos artistas e pelas palavras de nossos escritores. 

Devia ser 1978 ou 1979 quando meu Padrinho chegou com o disco de um cantor e compositor maranhense. Com apenas quatro faixas, o compact disc saltou da embalagem e começou a rodar no aparelho de som. Algumas músicas eram mais românticas e uma delas era mais ritmada, com uma letra bastante interessante e que desde aquela época vez ou outra sai do subconsciente e passa a me acompanhar em alguns momentos de reflexão. Na capa do disco estava estampada uma foto do autor e seu nome Ely Carlos.


As Buscas


Confesso que desde que voltei para minha terra tenho procurado alguma informação sobre esse cantor, mas parece que até mesmo as pessoas que trabalham com música (pelo menos as com quem conversei) haviam esquecido dele. Cheguei mesmo a acreditar que aquelas músicas que martelavam minhas memórias de infância eram fruto de minha imaginação.

Hoje pela manhã, aquela letra voltou à minha mente:


Mamãe, eu quero, eu quero

Viver meu sonho infantil

Cantar com a juventude 

O progresso do Brasil…


Logo depois, outros versos pediram passagem e começaram a ecoar:


Meu bem, minha linda flor,

Vives à espera de alguém 

Que não gosta de ti

E nem te quer bem 

Enquanto esperas por ele

Eu vou caminhando

À procura de alguém…

Não sei o que pensar de mim

Porque me maltratas assim

Se o meu coração é só teu

E de mais ninguém…


Claro que a letra pode estar incorreta, pois saltou das memórias de criança para a consciência de um adulto já cansado de tantos anos de trabalho. Mas fica assim mesmo.


A Inquietude


Chegando a minha casa comecei a vasculhar a internet em busca de informações sobre o autor. Nada. Convoquei as diversas Inteligências Artificiais que agora povoam nosso cotidiano e elas declararam que eu poderia ter-me equivocado quanto ao nome ou quanto à letra da música procurada, pois se tratava de um tema muito revisitado ao longo do tempo. 

Não desisti. Refinei a busca consegui localizar a capa do livro, algumas músicas do cantor, um canal de vídeos do próprio artista, outro da esposa do cantor, uma homenagem feita para ele em uma emissora de rádio em 2014 e algumas informações biográficas.

Não era minha imaginação. Aquele cantor e aquela música agora estavam ali diante de mim.


Quem é Ely Carlos?


Filho do casal Serapião Marcelo Santos e Helena Machado Santos, Elisabeto Machado dos Santos nasceu em São Luís, em 04 de julho de 1947, estudou na Escola Luiz Viana e desde a juventude demonstrou muito interesse pela música. Ainda bastante Jovem, adotou o nome artístico de Ely Carlos e participou da Banda M Som 7, com a qual viajou por praticamente todos os municípios maranhenses, principalmente durante o período carnavalesco. Fez parte também da Banda Os Intocáveis e depois investiu na carreira solo, percorrendo diversos estados do Brasil.  Casou-se com Maria do Espirito Santo Reis dos Santos, com quem teve dois filhos: Diego e Dayse. Gravou diversos discos e fez bastante sucesso se apresentando nos principais clubes da capital maranhense e em muitas cidades interioranas.

Seu trabalho de maior sucesso foi possivelmente a canção “Progresso do Brasil”, (composição de Ely Carlos, Carlos Endrigo e Nelson Coelho) na qual - em uma mescla de forró, carimbó e Soul Music -  faz  um périplo musical por vários estados, desmistificando poeticamente alguns estereótipos sobre a população dos lugares citados e mostrando a riqueza cultural do País.


Os Múltiplos estilos do Cantor 


Dono de uma voz tranquila, melodiosa e potente ao mesmo tempo, Ely Carlos, além de bom intérprete é também um criativo compositor. Ao longo de sua carreira, ele  passeou por diversos ritmos e estilos musicais. É possível encontrá-lo cantando toadas de bumba-meu-boi, como é o caso de “Aconteceu”, uma composição feita em parceria com o mestre Francisco Naiva, o grande nome do Boi de Axixá. Mas ele fez também incursões pelo reggae, marchinhas de carnaval, MPB, brega e muitos outros estilos.

Em seus vídeos postados na internet, é possível vê-lo acompanhado de sua banda cantando forró e outros ritmos populares em diversas apresentações. Contudo ele também já interpretou músicas românticas, ao estilo da Jovem Guarda, como é o caso de “à Procura de Alguém” (composição de Geraldo Gonçalves e Lima do Norte)  e “O Tesouro perdido” (composta por Ely Carlos, José Branco e Valtinho),  abaixo transcrita:


Eu estava sentado e uma estrela caiu

Senti no meu corpo e pra cima eu olhei

E aí desejei fazer o pedido

E aí desejei fazer o pedido

Achar um tesouro foi o meu pedido

Eu fiz o pedido e não fui atendido


Eu preciso encontrar o tesouro que eu pedi

Pra matar a saudade que invade o meu coração

Eu preciso encontrar, encontrar, encontrar

eu preciso encontrar, encontrar, encontrar


Últimas notas…


Em uma pesquisa rápida como esta, realizada em pouco mais de duas horas de mergulhos nas páginas da internet e nos labirintos da memória, não foi possível fazer uma atualização sobre como está hoje esse talentoso intérprete e compositor maranhense que fez sua voz ecoar por todo o Brasil. As postagens mais recentes de seus vídeos datam de um a dois anos atrás (2023/2024), geralmente em festas populares onde ele e sua banda se apresentaram. Percebe-se que não são filmagens profissionais, mas elas trazem a seus fãs a imagem de um senhor com seus  setenta e tantos anos cantando, tocando e animando o ambiente com a voz que lhe é característica.

De qualquer forma, espero que o cantor esteja bem e que continue levando sua voz a todos os seus admiradores. Este singelo texto é muito mais que uma homenagem ao cantor. É também um agradecimento por ele fazer parte da minha infância. 

Quase fechando o texto, localizei o CD “Hei de te encontrar”, com dezenove composições que mostram a variedade musical desse talentoso cantor. Vale a pena ouvir!!!

Afinal, um tesouro musical como esse não pode ser perdido ou cair no esquecimento. 


Tomara que alguém possa trazer novas notícias sobre ele!





segunda-feira, 15 de setembro de 2025

SOBRE TEXTOS E LIVROS

 Novos artigos de segunda #49


Imagem criada com auxílio de Inteligência Artificial


SOBRE TEXTOS E LIVROS

José Neres

 

Quando te sentires só,
buscas um bom livro
e terás boa companhia.
(Abraão Teixeira)

  Por razões bastante óbvias, o aparecimento de textos precede em muito o surgimento do livro como o conhecemos hoje. Mas, tanto um como outro, são de vital importância para a transmissão dos conhecimentos acumulados ao logo de toda a história da Humanidade.

   O texto é sempre algo multifacetado e cheio de detalhes que nem mesmo um mergulho em suas entranhas seria capaz de destrinçar por completo. O texto é sempre um estranho composto que contém em sua fórmula uma quantidade limitada de informação explícita, mas que esconde sob suas diversas aparências, um universo inesgotável de informações implícitas. Desse modo, por mais que os leitores tentem chegar a uma conclusão definitiva um texto jamais se esgotará em suas múltiplas interpretações e reinterpretações.

  O texto é tão importante, que nem mesmo espera para ser escrito. Ele pode vir disfarçado das mais diversas formas. Pode ser um olhar, um filme, um sorriso, um poema, um romance, uma letra de música, um sinal de que a chuva não demora a chegar, um efusivo aperto de mão... tudo pode, e deve, ser lido como um grande texto. E todo o conhecimento que o homem adquire ao longo de sua vida deve ser visto como instrumentos para leitura da realidade que nos cerca. Não é por acaso que o grande educador Paulo Freire, em uma de suas frases mais conhecidas, diz que: “a leitura do mundo precede a leitura da palavra, daí que a posterior leitura desta não possa prescindir da continuidade da leitura daquele”[1].

 Mas como guardar tanta informação? Como transmitir os inúmeros conhecimentos adquiridos após séculos e mais séculos de experiências humana? Apenas com base em textos orais? Claro que não! Por melhor que seja a memória do homem, ela será sempre limitada. Para tentar preencher tal lacuna, surge a escrita e, muito tempo depois dela, uma das maiores invenções do homem: o livro.

    Embora hoje, ainda em princípios do século XXI, muitos preconizem a morte do livro em sua forma física, ele continua vivo e sendo (re)editado, mesmo com o surgimento de novas tecnologias, e não se pode negar a importância dele para todo o progresso da humanidade. Afinal de contas:

A presença do livro na nossa cultura deu-se, pois, de forma fundante e avassaladora: civilização pela escrita, ela seria – como se concebia até bem pouco – a chave com a qual abrimos as portas da História. Vivemos, em conseqüência, numa sociedade grafocêntrica, embora se saiba que essa posição conferida à palavra escrita não significa exclusividade, não só porque há culturas que dela prescindem como porque, na atualidade, confere-se à imagem uma nova dimensão. Tal postura não impede, no entanto, que nos aproximemos do livro, um dos objeto-simbolo da modernidade, com certa reverência. [2]

 

            Com o aparecimento do livro, os textos, que antes podiam perder-se facilmente nas encruzilhadas do tempo e do espaço, ganharam um elemento norteador, um meio de perpetuação que ia muito além da memória humana e das incertezas das transmissões orais. A mesma história poderia agora ser contada dezenas, centenas, milhares de vezes, sem que uma vírgula sequer fosse alterada. Afinal de contas verba volant, scripta manent[3]. Um autor poderia finalmente grafar, quando quisesse e lhe fosse útil, seu nome na portada de uma obra e dizer bem alto que ele havia criado aquela história. Não haveria mais dúvidas sobre que realmente era o autor de uma obra. Os grandes heróis, as grandes aventuras finalmente poderiam ser compartilhadas com pessoas das mais diversas partes do mundo, sem que alguém precisasse perder a vida no interminável trabalho de transcrever manualmente o conteúdo de uma obra.

            Mas o mundo não é tão arrumadinho assim. Passada a euforia da impressão dos muitos exemplares, diversas polêmicas surgiram. Será que o nome que estava na capa do livro correspondia exatamente a quem criou a história? Será que a mesma história era lida da mesma forma incontáveis vezes? Até onde vai a noção de originalidade e de criatividade? Quais os limites que separam plágio e intertexto... Tantas perguntas... Mínimas respostas...

            Dúvidas e mais dúvidas se multiplicam até hoje. Será que Homero realmente existiu ou tudo não passou de mais uma invenção dos criativos gregos? E se ele não existiu realmente, quem seria o verdadeiro autor (ou autores) da Ilíada e da Odisséia? O grande bardo inglês William Shakespeare criou Romeu e Julieta ou apenas transformou em peça teatral uma lenda tantas vezes contada e recontada pelas gerações anteriores? Até onde Eça de Queirós, ao escrever sobre o amor adúltero de Luísa em O Primo Basílio, se inspira na magistral obra de Gustave Flaubert, Madame Bovary? E Adolfo Caminha, nos momentos finais de A Normalista, não estaria também revivendo os momentos finais de O Crime do Padre Amaro, do acima citado Eça de Queirós?

             Para provocar mais discussões ainda, o escritor argentino Jorge Luis Borges ainda escreveu Pierre Menard, el autor del Quijote, no qual discute a questão da autoria. Pierre Menard é um escritor cuja “ambição era produzir algumas páginas que coincidissem  - palavra por palavra e linha por linha – com as de Miguel de Cervantes”[4], mesmo assim, o hipotético autor da “nova” obra a considera original, pois são construídas em momentos históricos distinto e com diferentes motivações. No final do conto, o narrador comenta que:

 

Menard (talvez sem querê-lo) enriqueceu, mediante uma técnica nova, a arte fixa e rudimentar da leitura: a técnica do anacronismo deliberado das atribuições errôneas. Essa técnica de aplicação nos leva a percorrer a Odisséia como se fosse posterior à Eneida e o livro Le Jardin du Centaure de Madame Henri Bachelier como se fosse de Madame Henri Bachelier. Essa técnica povoa de aventura livros mais pacíficos. Atribuir a Louis Ferdinand Céline ou a James Joyce a Imitação de Cristo não é suficiente renovação dessas tênues advertências espirituais?[5]

 

             Os questionamentos levantados no conto borgeano levam a diversos outros concernentes à natureza da recepção das obras ao longo dos tempos. Por que será que A Arte de Amar de Ovídio foi chamada de obscena na Roma antiga e hoje é tida como obra de bom gosto artístico? Por que razão livros como O Sofá (de Clébillon Fils), Teresa Filósofa (autor desconhecido ) e Fanny Hill (de John Cleland) foram tidos como verdadeiros lixos literários na época e hoje são encontrados em livraria se bancas de revista de todo o Brasil e tratados como obras de inovação literária? Como serão vistos daqui há vinte, trinta ou cem anos livros como O Doce Veneno do Escorpião, de Bruna Sufistinha? São perguntas praticamente sem resposta. Mas que trazem dentro de si pelo menos uma informação inconteste: os textos não mudaram, mas os leitores de hoje são bem diferentes daqueles que liam essas mesmas obras antigamente. E o contexto histórico-geográfico é capaz de alterar a recepção de uma obra e/ou de um autor.

      Uma outra dúvida levantada foi com relação à autenticidade do texto. De um modo ou de outro, todo escritor tem que primeiro ser um grande leitor. Então é natural que durante a confecção de seu texto ele remeta (de modo consciente ou não) a várias de suas leituras. É impossível, por exemplo, para um amante da literatura, ler Bocage e não pensar nos poemas de Camões; é difícil ler A Eneida, de Virgílio, e não pensar nas epopéias homéricas; assim também, somente uma pessoa muito desatenta, lerá o badalado best seller Código da Vinci e não perceberá as referências à Bíblia e à História da Arte.

      Mas, ao longo da História, o livro também teve seus momentos de aparente insegurança. Por diversas vezes, o boato de que o livro já estava com seus dias contados ganhou as ruas. Alguns inventos foram tidos como inimigos da obra impressa: o rádio, o cinema, a televisão, a internet... Contudo, de uma forma ou de outra, todas essas invenções acabaram contribuindo para a difusão de textos que antes eram exclusivos dos livros. As novelas de rádio fizeram com que nossos avós entrassem em contato com tantos textos clássicos. A televisão e o cinema até hoje bebem nas páginas dos livros, buscando sempre entreter um público cada vez mais ansioso de aventuras, de mistérios e de histórias de amor. A internet, a aparentemente o mais temível inimigo dos livros na atualidade, vem aos pouco se tornando uma espécie de biblioteca virtual, um verdadeiro repositório de textos de todos os tipos e de todos os estilos, criando novas alternativas tanto para o leitor comum quanto para o pesquisador, conforma nos diz o professor José Luís Jobim:

É possível também que, por parte dos usuários, haja no futuro a questão da escolha de por qual meio acessar qual texto. A biblioteca de Stanford oferece on-line e em papel os periódicos acadêmicos que considera mais relevantes a biblioteca do Centre Pompidou, na França, oferece o jornal Lê Monde em papel, em CD-ROM e on-line. Dependendo das condições financeiras de cada instituição, pode-se ter de fazer escolhas entre essas opções. A discussão sobre custo/benefício do meio escolhido será inevitável, até porque as verbas são finitas, o que sempre implicará alguma forma de escolha por parte de quem decidirá para onde elas irão. Aliás, no caso das bibliotecas que planejam entrar no mundo digital, uma das primeiras decisões será, provavelmente, sobre quais serão os softwares a serem usados, talvez começando por optar entre “proprietários” ou “não-proprietários”.[6]

            De qualquer forma, não se pode negar que o espaço do livro como objeto físico ainda perdurará por muito tempo, mesmo porque “não se pode negligenciar ainda o desconforto da leitura em tela de computador: se, para os textos curtos, não parece haver tanto problema, para textos longos a leitura continuada é bastante exaustiva”[7].

      Além disso, um livro pode também ser visto como um fetiche incompreendido por muitos, mas disputado por indivíduos de diversas esferas sociais. Livro pode ser companhia, poder ser passado, futuro ou presente, como metaforiza o poeta Abraão Teixeira:

Dê de presente ao seu filho
um bom livro.
Melhor ainda,
seja você mesmo o conteúdo
vivo de um livro.
Seja um exemplar.[8]

            O professor Gabriel Perissé, em um volume inteiramente dedicado aos livros e à leitura faz a seguinte declaração de amor:

Abro um livro, e para mim se abrem portas e comportas. Sou convidado a entrar em mim mesmo, percorrendo as linhas e entrelinhas do texto. O texto é um mapa cujo destino estou para descobrir. O livro me leva às portas do indecifrável, que se torna indecifrável no exato momento em que começo a decifrá-lo. E o que devo fazer? Que destino escolher, eu que já nasci com o destino de não ser fatalista?[9]

        Para finalizar este breve trabalho, que é apenas um embrião a se desenvolver em outros estudos mais aprofundados, nada mais pertinente que as palavras do escritor Gaúcho Moacyr Scliar, que, pela hipotética voz do sábio Salomão antevê o futuro dos livros.

Claro, o livro como objeto também é perecível. Mas o conteúdo do livro, não. É uma mensagem que passa de geração em geração, que fica na cabeça das pessoas. E que se espalha pelo mundo. O livro é dinâmico. O livro se dissemina como a semente que o vento leva. [10]

 

REFERÊNCIAS CITADAS

 

BORGES, Jorge Luis. Obras Completas I. São Paulo: Globo, 1998

CAMBRAIA, César Nardelli. Introdução à crítica textual. São Paulo: Martins Fonte, 2005.

FREIRE, Paulo. A importância do ato de ler em três artigos que se completam. 43 ed. São Paulo: Cortez, 2002. 

JOBIM, José Luís (org.) Literatura e informática. Rio de Janeiro: Eduerj, 2005

PERISSÉ, Gabriel. Elogio da Leitura. Barueri: Manolé, 2005.

SCLIAR, Moacyr. A mulher que escreveu a Bíblia. São Paulo: Companhia das Letras, 2007

TEIXEIRA, Abraão. Pensando em você. São Luís, Lithograf. 2005.

WALTY, Ivete Lara Camargo et all. Palavra e imagem: leituras cruzadas. 2ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2006.



[1] FREIRE, Paulo. A importância do ato de ler em três artigos que se completam. 43 ed. São Paulo: Cortez, 2002.  pág. 11.

[2] WALTY, Ivete Lara Camargo et all. Palavra e imagem: leituras cruzadas. 2ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2006. pág. 21.

[3] TRADUÇÃO: As palavras voam, mas permanecem quando são escritas.

[4] BORGES, Jorge Luis. Obras Completas I. São Paulo: Globo, 1998. Pág.  493.

[5] Idem, pág. 498.

[6] JOBIM, José Luís. Autoria, leitura e bibliotecas no mundo digital. In; JOBIM, José Luís (org.) Literatura e informática. Rio de Janeiro: Eduerj, 2005. pág. 129-130.

[7] CAMBRAIA, César Nardelli. Introdução à crítica textual. São Paulo: Martins Fonte, 2005. Pág. 186.

[8] TEIXEIRA, Abraão. Pensando em você. São Luís, Lithograf. 2005. Quarta capa.

[9] PERISSÉ, Gabriel. Elogio da Leitura. Barueri: Manolé, 2005. Pág. 09.

[10] SCLIAR, Moacyr. A mulher que escreveu a Bíblia. São Paulo: Companhia das Letras, 2007. Pág. 88.


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JOSÉ CHAGAS, 101 ANOS José Neres  Breve conversa com José Chagas, em 2006 Fonte: arquivo do autor Hoje, 29 de outubro de 2025, lembramos a p...