Novos artigos de segunda #33
MÚSICA E LITERATURA
José Neres
É bastante antiga a relação intrínseca
entre a música e a literatura. O Filósofo grego Aristóteles, em sua Poética,
já destacava a importância da música na composição das peças teatrais e da
melopeia para a fruição das obras literárias.
Na Idade Média, a relação do texto
literário com a musicalidade das palavras se torna ainda mais intensa, ao ponto
de a poesia medieval, durante determinado espaço de tempo, receber a nomenclatura
de cantiga (de amor, amigo, escárnio e maldizer), não apenas por ser acompanhada por instrumentos musicais, mas também pelo ritmo de leitura
imposto pelos versos dos poemas.
Atualmente, em uma época em que
praticamente todo mundo circula conectado a fones de ouvido, a música tem se
tornado cada vez mais uma companhia constante de pessoas de diferentes faixas
etárias e sociais. Já a literatura às vezes é tida como luxo e outras vezes
como lixo. É cada dia mais raro encontrar pessoas com livros nas mãos. Claro que
as novas tecnologias permitem que toda uma biblioteca caiba em um pequeno
aparelho de telefonia móvel, mas nem sempre esse é o objetivo desses usuários.
Mesmo assim, a música nunca deixou de
ser uma forma de fazer uma intermediação entre o leitor e as obras literária,
embora isso nem sempre seja perceptível à primeira vista, com é o caso de “Uma
barata chamada Kafka”, gravada em 1989 pelo grupo musical Inimigos do Rei. Quem
ouve distraidamente a canção, sem atentar para o título, talvez não perceba o
trabalho artístico com a linguagem no trecho abaixo, que remete ao livro A
Metamorfose, de Franz Kafka:
Ela disse sim! Vem cá ficar comigo
Sim! Gosta de tudo que eu gosto
Sim! Vem cá ficar comigo
Sim! Vem, Kakfa.
As obras de Jorge Amado, além de serem diversas vezes adaptadas para a televisão e para o cinema, também ganharam algumas versões musicais, como é o caso de “Jubiabá”, música interpretada por Gerônimo Santana, inspirada no romance homônimo; “Tieta”, famosa composição de Luiz Caldas; “Luz de Tieta”, escrita e interpretada por Caetano Veloso; “Alegre menina”, composição de Dorival Caymmi e Jorge Amado, que tem como base o livro “Gabriela Cravo e Canela”. Esse romance também serviu como base para Dorival Caymmi escrever o clássico “Modinha para Gabriela” e eternizar na memória das pessoas os seguintes versos:
E sou mesmo assim
Vou ser sempre assim Gabriela
Sempre Gabriela
Os
admiradores da obra infanto-juvenil de Monteiro Lobato provavelmente se lembram
da abertura do programa televisivo que trazia a voz de Gilberto Gil cantando
essa emblemática letra inspirada em “O Sítio do Pica-Pau Amarelo”. Quando se ouve
alguém falar sobre essa obra, geralmente vem à memória os seguintes versos:
Bananada de goiaba
Goiabada de marmelo
Sítio do Pica-Pau Amarelo
Sítio do Pica-Pau Amarelo
Boneca de pano é gente
Sabugo de milho é gente
O sol nascente é tão belo
Sítio do Pica-Pau Amarelo
Sítio do Pica-Pau Amarelo
Raimundo Fagner
sempre valorizou a relação entre música e literatura, como é o caso de “Motivo”,
poema de Cecília Meireles por ele musicado; “Fanatismo”, inspirado em
poema de Florbela Espanca; e “Traduzir-se”, poema de Ferreira Gullar que
também ficou imortalizado por esse cantor cearense. Sendo que o autor do Poema
Sujo – que revisitou as “Bachianas Brasileiras nº 2”, de Heitor Villa-Lobos
- foi revisitado em outras composições musicais, como “Bela, Bela”, interpretada
por Milton Nascimento, “Trenzinho do Caipira”, que conta com diversos
intérpretes, e “Vambora”, cantada por Adriana Calcanhotto, onde é possível
encontrar alusões a livros de Ferreira Gullar e de Manuel Bandeira.
O grupo
musical Quinteto Violado gravou “Palavra Acesa”, uma adapt(ação musical
de um poema de José Chagas 1924-2014). Um dos
grandes sucessos de Chico Buarque de Hollanda é “O enterro de um lavrador”,
trecho do poema “Morte e Vida Severina”, de João Cabral de Melo Neto (1920-1999). O
poema “Go back”, de Torquato Neto foi gravado pelo grupo Titãs.
Trechos da Bíblia e um soneto de Luís Vaz de Camões são cantados pelo grupo Legião Urbana em “Monte Castelo”, uma das composições mais representativas desse famoso grupo musical. Admirador da literatura, Raul Seixas foi buscar no livro “As Minas do Rei Salomão” de Henry Rider Haggard (1856-1925) a inspiração para música homônima ao romance do escritor inglês, aproveitando para citar o Dom Quixote na letra da composição. Os ensinamentos de Maábarata no livro “Bhagavad Gita” inspiraram Raul Seixas e Paulo Coelho na composição de “Gita”, cujos versos abaixo são constantemente relembrados
Eu sou a luz que se apaga
Eu sou a beira do abismo
Eu sou o tudo e o nada
“Admirável
gado novo” (de Zé Ramalho) e “Admirável chip novo” (de Pitt), apesar
de trazerem concepções estéticas e abordagens temáticas distintas, são inspiradas
no livro “Admirável mundo novo”, do escritor inglês Aldous Huxley
(1894-1963). O romance de Eça de Queiroz (1845-1900) “O primo Basílio” serviu de
inspiração para “Amor, I love you”, grandioso sucesso na voz de Marisa
Monte.
Às vezes, a
versão musical de determinado texto se torna tão conhecida que muitas pessoas confundem
o intérprete com autor original da obra. É o que ocorreu com “E agora José” – poema
de Carlos Drummond de Andrade (1902-1987)- que fez muito sucesso na voz de Paulo Diniz, responsável
também pala versão musicalizada do poema “Vou-me embora pra Pasárgada”, de Manuel
Bandeira (1886-1968).
Esse é um
tema que não se esgota em poucas páginas. Cada pessoa, provavelmente, terá em
sua mente uma relação de outras peças musicais inspiradas na literatura. O
importante é lembrar que a música pode ser também uma forma de aproximar os
leitores das obras literárias ou de outras formas de expressão artística.