Novos artigos de segunda #40
![]() |
Fonte da imagem: arquivo do autor |
Como, possivelmente, amanhã não terei como postar o artigo, antecipo-o para hoje. Mas como já é quase segunda... Está valendo!
🐝🐝🐝🐝🐝🐝🐝🐝🐝🐝🐝🐝🐝
ESSA ESTRANHA MANIA…
José Neres
O que é necessário para se escrever um bom conto? Temos aí uma pergunta frequentemente formulada e reformulada, mas para a qual dificilmente um dia se terá uma resposta definitiva ou pelo menos satisfatória para a maioria das pessoas.
Em primeiro lugar, é preciso ter algo a dizer. É importante que o escritor ofereça ao leitor uma oportunidade de ter uma experiência que deixe suas marcas e provoque algum tipo de reflexão. Um bom trabalho com a linguagem também é essencial. Há muitas formas de se atingir um objetivo, todas elas passam, de alguma forma, pela escolha certa das palavras e pela tentativa de mostrar que é possível narrar algo aparentemente simples, mas de um modo diferente, fora do convencional.
Só isso? Claro que não. É necessário usar cada frase como se fosse um elo de uma corrente que tenha como função “prender” o leitor na tessitura da narrativa e, no final, fazê-lo perceber que algo está faltando, mesmo que a história contada esteja tecnicamente completa, e que aquilo que falta talvez não necessite ser contado, pois se trata de algo inefável capaz de acionar o dispositivo secreto que liga os momentos de leitura às asas da imaginação.
Parece que em seu livro “A estranha mania das abelhas” ( Urutau, 2022, 64 páginas), a jovem escritora Rute Ferreira está atenta a todos esses detalhes e a muitos outros que tornam a leitura de contos algo prazeroso e especial.
Composto por apenas seis contos bem estruturados, o livro foi elaborado com base em pelo menos quatro pilares temáticos: o feminino, a família, a morte e a busca de si, todos eles entrelaçados com reflexões que vão da crítica social até às conflituosas relações amorosas, trazendo nas entrelinhas uma gama de incômodas questões que precisam ser discutidas.
O primeiro conto do livro - "Casa de farinha" - traz à baila as discussões sobre traumas, lutos, superstições e maternidade. Tudo mesclado com um suave tom de mistério que faz o leitor sentir-se lado a lado com as personagens na busca de uma verdade que pode ser desesperadora e incômoda.
Violência, ciúmes e relações parentais marcam o centro do conto “O vestido”. Com maestria, a autora consegue sair de uma apresentação aparentemente lírica e pueril para chegar a um desfecho com tonalidade neonaturalista que remete ao estilo de autores como Rubem Fonseca, Dalton Trevisan, Plínio Marcos e Patrícia Melo, mas carregado de desconcertante suavidade.
Rute Ferreira utiliza a metáfora da estrela para discutir dois temas bastante melindrosos: a morte e os preconceitos incrustados na vida em sociedade. No conto intitulado “Uma tragédia de estrelas”, as personagem nem precisam de nome próprio, são tipificadas e retomadas a partir de suas características físicas e/ou comportamentais, para lembrar que às vezes somos apenas um corpo ou um objeto que precisa ser cultuado ou descartado de acordo com a situação abordada em determinado momento.
A morte - que é uma constante no livro - é a temática principal do conto “O retrato”, que traz o reencontro de uma pessoa consigo mesma, com seu passado e com suas angústias minutos antes do momento que separa a vida da morte. Em uma linguagem fluida, a autora descortina os meandros de toda ema existência que tem hora marcada para terminar.
No penúltimo conto, que empresta seu título ao livro, a escritora novamente recorre às relações parentais e às consequências da perda definitiva de um ente querido. Nesse texto, as dicas sobre o desfecho são apresentadas de modo sutil, levando o leitor mais desatento a trilhar por falsas veredas até descobrir que está sendo conduzido por uma caminho falso. A relação entre uma mãe e uma filha é esmiuçada a fundo e a ausência de uma tem reflexos na permanência da outra.
Em “Seu destino é uma fuga, Olga!” O leitor se depara com uma jovem mulher que volta a suas origens para reencontrar-se com um antigo amor e com a própria história. É uma espécie de acerto de contas com lacunas que precisam ser preenchidas e com antigas histórias que devem ser recortadas. Será que é possível parar de fugir de si mesmo?
Rute Ferreira escreve bem e merece ser lida linha a linha. Ela escolheu um bom caminho na escrita e está construindo um estilo marcante e que poderá trazer bons frutos para nossa literatura contemporânea. Seus contos são bons e, de certa forma, ajudam a responder às questões propostas no início desde artigo.
Esperemos novos livros!
PS: Quase no final do livro, em uma daquelas páginas que a maioria das pessoas teima em não ler, a autora de A estranha mania das abelhas, entrega uma das chaves para a interpretação dos textos e faz um desafio para os leitores. Ela elucida de onde surgiu a ideia para a confecção dos contos e evoca sua admiração pelo escritor pré-modernista Lima Barreto…
Qual a relação entre o autor de Triste fim de Policarpo Quaresma e o livro de Rute Ferreira? É preciso ler ambos para descobrir. É preciso parar com essa estranha mania de querer tudo tão mastigado.
Clique e leia um conto de Rute Ferreira
Ótimo artigo. Obrigada por compartilhar o conto, é bem tocante.
ResponderExcluirObrigado, querida!
ExcluirJá me sinto motivada à leitura. Obrigada, caro Neres!!
ResponderExcluir