Novos artigos de segunda #17
OUTONO DE CARNE ESTRANHA
José Neres
No início da década de 1980, eu era um dos tantos garotos que moravam no Parque Estrela D’Alva, que, naquela época, não passava de um incipiente loteamento ligado à cidade de Luziânia (GO).
Todo final de mês, uma das vizinhas - Chamada Maria de Lourdes (não declinarei o sobrenome), sabendo que eu estudava em Luziânia, pedia-me um favor: “Você pode ir até o banco e ver se tem algum depósito para mim?” Sem problema. Eu chegava ao banco, enfrentava uma pequena fila e fazia a pergunta ao caixa. A resposta era, invariavelmente, não.
Um dia, depois de muitos meses dessa angustiada espera, ela me falou o porquê daquele pedido mensal: seu marido havia partido para o garimpo de Serra Pelada e ficou de enviar-lhe dinheiro para o sustento da família.
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A literatura tem o dom de despertar memórias afetivas que estavam jogadas nos desvãos do esquecimento. Digo isso por perceber que hoje, mais de quatro décadas depois, dona Maria de Lourdes, que, provavelmente, já deve ter feito sua viagem final, voltou à minha memória, como se eu ainda fosse aquele garoto na fila do banco
E como isso aconteceu? Simples, na leitura do livro Outono de carne estranha (Editora Record, 2023, 176 páginas), escrito por Airton Souza, vencedor do Prêmio SESC de Literatura em 2023.
Trata-se de um romance ambientado justamente em Serra Pelada, durante o período em que a esperança de enriquecer no garimpo levou milhares de pessoas àquele local. Muitos não conseguiram enriquecer e nem mesmo tiveram a sorte de voltar para o seio de suas famílias.
Utilizando uma linguagem que mescla a crueza de algumas descrições e metáforas carregadas de poeticidade, Airton Souza constrói sua narrativa a partir de uma relação homoafetiva e suas consequências dentro de uma sociedade explicitamente violenta e eivada de preconceitos.
Ao longo do romance, o leitor entra em contato com cenas que evocam assassinatos, torturas, desmandos e ameaças. Tudo em um tom realístico e repleto de dores, odores e fluidos corporais. O que pode chocar alguns leitores menos afeitos aos estilos adotados pelas narrativas contemporâneas.
Porém, quem se ativer apenas às cenas de sexo e/ou de violência irá perder a oportunidade de entrar em contato com um texto poeticamente bem elaborado e com discussões que podem ir além dos entornos de Serra Pelada e de uma época historicamente datada.
Embora o romance seja centrado em um ponto específico de um Brasil das décadas finais do século XX, as críticas e denúncias levantadas pelo autor assumem um caráter universal e não apenas regional. Um exemplo disso é a constante, porém quase sempre invisível presença do marechal e de seus bate-paus. Além de representarem a vigilante presença de um Estado que apenas explora, vigia e pune - sem nada oferecer em troca -, eles são também a viva metáfora de um medo que se apresenta diante do trabalhador em forma de armas brancas, armas de fogo, palavras e até de silêncios.
No livro, Zuza e Manel vão muito além de um casal homoafetivo. Eles são a representação icônica de uma parte da sociedade que se vê impotente diante de fatos e de ordens absurdas, mas que devem ser cumpridas. Representam também os passados silenciados pelos poderes e que só podem ser revividos pelas recordações. Contudo, diante das condições adversas, até mesmo as memórias passam a não serem confiáveis.
No livro, há espaço para quase todos os seres humanos a quem foram negadas condições básicas de vida. Há o padre desencantado com tudo. Há as prostitutas que se entregam em trocas de algumas cédulas. Há a família que ficou distante e que espera o retorno do ente querido. Há quem não possa assumir publicamente a própria sexualidade. Há quem não suporte as pressões do garimpo. Há o explorador e o explorado. Há quem apenas sonhe em um dia bamburrar…
Bamburrar - que significa enriquecer com o ouro encontrado no garimpo - é uma das palavras que norteiam o livro e as reações das personagens. Logo se descobre que bamburrar não é apenas questão de sorte ou de esforço próprio. É preciso também sobreviver às diversas formas de exploração. É preciso inclusive lutar para manter a sanidade mental.
Quase no final do romance, na página 172 do livro, é possível encontrar uma frase que resume tudo: “Em Serra Pelada, cada homem era apenas a continuação de sua própria desgraça”. Uma síntese perfeita para vidas que se reconhecem como vítimas constantes de tantos abusos. Ali, cada palavra dita pode se transformar em um permanente alvo colado a alguma parte essencial de quem ousou sonhar.
Outono de carne estranha é um livro para ser lido com calma. Antes de iniciar a leitura das primeiras páginas, seria bom trancar todos os preconceitos em um imaginário cofre e partir rumo a um terreno desconhecido, onde dores e odores se impregnarão em sua alma e em sua pele, mandando inclusive seu modo de encarar as realidades alheias.
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Termino o livro e volto a pensar em dona Maria de Lourdes. Será que algum dia, depois que eu fui embora da cidade, apareceu algum dinheiro em sua conta? Será que o marido dela bamburrou e depois voltou para casa? Será que morreu no garimpo? Será que foi perseguido pelo marechal? Será que conheceu alguém parecido com Manel e Zuza? Será?
Nunca saberei… Mas pelo menos a literatura me permite imaginar e desejar que tudo tenha dado certo.
Em 2002, fiz com outros colegas, coordenado por um padre, professor da Ufma a rota da escravidão. Constatamos os inúmeros garimpeiros escravos e inúmeras meninas sendo prostitutas. Esse livro é pura realidade. Outra grande descoberta de José Neres. Parabéns!
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