(Quase) ao estilo de Guilherme de Almeida
Gosto das formas fixas, sejam elas sonetos, trioletos, rondós, trovas ou hai-cais.
Para mim, é sempre um desafio colocar ideias dentro de um espaço previamente determinado por alguém que nem conheço. No final, fica sempre a sensação de haver tentado sem ter conseguido atingir os objetivos. Mas a teimosia fala mais alto...
Os livros didáticos de minha juventude contribuiram para moldar um pouco meu gosto literário. Foi nesses compêndios que tive os primeiros contatos com Quintana, Drummond, Gullar, Coralina, Fernando Sabino, Lourenço Diaféria, Stanislaw Ponte Preta, Adélia e tantos outros nomes de nossa literatura. Como era bom explorar o conteúdo daqueles livros!
Foi neles também que conheci Guilherme de Almeida, o poeta e tradutor modernista que transpirava todos os estilos clássicos.
No meu livro da antiga quinta série estavam reproduzidos dois poemas dele: "Você", quase uma ode romântica, e "A rua das Rimas", um belo experimento com as palavras. Milhares de vezes passei os olhos por aqueles textos. Até cheguei a decorar alguns trechos...
Mais tarde, em plena adolescência, entrei em contato também com seus hai-cais, pequenas obras de ourivesaria literária, às vezes subestimada e relegadas a um plano inferior. Nunca entenderei isso!
Guilherme de Almeida praticamente reinventou o formato do hai-cai no Brasil. Ele manteve a ideia dos três versos e acrescentou um rígido esquema rímico no qual o primeiro verso rima com o terceiro (ambos com cinco sílabas poéticas) e, no segundo, a segunda sílaba rima internamente com a sétima, mantendo também uma analogia com a natureza e um diálogo como um modo filosófico e reflexivo de ver a vida. Transcrevo o exemplo abaixo, para situar quem achou complicado:
INFÂNCIA
Um gosto de amora
comida com sol. A vida
chamava-se "Agora".
(Guilherme de Almeida)
Claro que jamais consegui ou conseguirei imprimir em três versos a beleza imagética perpetrada por Guilherme de Almeida, contudo, como disse antes, sempre fica o desfio de tentar.
Hoje, nesta última sexta-feira de setembro, enquanto me desvencilhar a de algumas tarefas burocráticas, resolvi brincar com as palavras e ao mesmo tempo homenagear algumas pessoas que sempre me incentivaram a continuar produzindo textos (qualidade já é outra história!)
Seguem os textos e a desculpas por associar pessoas tão talentosas a versos tão simplórios. Mil perdões!
I - INSPIRAÇÃO
(Para Marcos Fábio Belo Matos)
Do aroma da rosa
Um dia algo principia
Daí nasce a prosa.
II - DISFAGIA
(Para Silvana Meneses)
O sabor da menta
Dessabe na boca que abre…
Mas não alimenta…
III - DESCUIDO
(Para Antonio Ailton)
Só sobrou um retalho
Da maçã.. pela manhã,
Tudo é ato falho.
IV - COLHEITA
(Para Laura Amélia Damous)
Minha primavera
Se constrói só no que dói
Sou fruto da espera…
V - NATUREZA MORTA
(Para Natan Campos)
Na mesa, um limão…
Nas crianças, a esperança…
Eu, sem solução…
VI - CARPE DIEM
(Para Dino Cavalcante)
A flor do alecrim
Nessa idade traz saudade
Só falta eu em mim.
VII - PAISAGEM
(Para Linda Barros)
Um jardim sem flor
Me mina e me contamina
É cura com dor…
VIII - INFINITUDE
(Para Bioque Mesito e Nara)
Paixão se escancara
Se na vida está envolvida
Uma doce Nara.
IX - PARADOXO
(Para Ceres Costa Fernandes)
Que situação!
Em um mundo tão imundo
Bate bom coração!
X - TREINAMENTO
(Para Luiza Cantanhêde)
No seio da terra
A saúva traça a curva
Onde a dor enterra.
XI - AMPULHETA
(Para Paulo Rodrigues)
Todo rio corre
Para no mar desaguar…
Nosso tempo escorre…
XII - PASSAGEM
(A Viriato Gaspar, em memória)
A vida foi ato
Pelo ir e pelo vir…
É mais que retrato…
XIII - LACRIMAR
(Para Helena Mendes)
Lágrima não bóia
No mar sempre a lastimar
Seja aqui ou em Tróia.
XIV - INSTANTÂNEO
(Para Mhario Lincoln)
Diante do fato,
No frio ou à margem do rio
Tire-se o retrato!
XV - ENDEREÇO
(Para Rogério Rocha)
A palavra aflita
Ceia meia-noite e meia...
Não dorme, dormita.
XVI - RECADO
(Para Ana Maria França Cutrim)
A flor do hibisco
Morta, me avisa na porta:
Sofrer é um risco...
XVII - CÁLCULO DIÁRIO
(Para José Ewerton Neto)
Lápis traça reta
A raiz que nunca me diz
A dose correta..
XVIII - JARDIM
(Para Alice Moraes)
Só uma dor vive
No jardim que habita em mim:
A flor que não tive!
XIX - BIOBIBLIOTECA
(Para Joseane Souza)
Vida é livro aberto
Com mágicas dez mil páginas
E leitor incerto.
XX - SAPERE AUDE
(Para Ruy Pontes)
Vã filosofia
Disfarça o que o mundo traça...
É monotonia!

Bravo! Grata pelo compartilhamento!
ResponderExcluirMuito obrigado!
ExcluirUm texto de quem entende desse assunto de dizer muito com poucas palavras. Uma arte que requer técnica, conhecimento de causa e um olhar sensível. Muito bom ler seus textos, como sempre. E ainda mexeu com minha memória afetiva ao lembrar de um autor que li muito na adolescência: Lourenço Diaféria.
ResponderExcluirVerdade, caro Rogério. Dizer algo em poucas palavras é sempre um desafio. Também li muito o Lourenço Diaféria na juventude. Tinha um estilo bem marcante.
ExcluirMestre José Neres, você sempre nos encanta e nos ensina! Obrigada!
ResponderExcluirObrigado, Luiza. Abraços!
ExcluirÉ incrível a capacidade de escrever rimando, ainda mais com os hai-cais. Foi maravilhoso conhecer essa técnica.
ResponderExcluirÉ sempre um desafio. Mas vale a pena testar as possibilidades.
ExcluirHai-kai edifício/ no azul celeste/ nas mãos de um mestre. Valeu, poeta! Ass. Ewerton
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