Novos artigos de segunda #49
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SOBRE TEXTOS E LIVROS
José
Neres
Por razões bastante óbvias, o aparecimento de textos precede em muito o surgimento do livro como o conhecemos hoje. Mas, tanto um como outro, são de vital importância para a transmissão dos conhecimentos acumulados ao logo de toda a história da Humanidade.
O texto é sempre algo multifacetado
e cheio de detalhes que nem mesmo um mergulho em suas entranhas seria capaz de
destrinçar por completo. O texto é sempre um estranho composto que contém em
sua fórmula uma quantidade limitada de informação explícita, mas que esconde
sob suas diversas aparências, um universo inesgotável de informações implícitas.
Desse modo, por mais que os leitores tentem chegar a uma conclusão definitiva um
texto jamais se esgotará em suas múltiplas interpretações e reinterpretações.
O texto é tão importante, que nem
mesmo espera para ser escrito. Ele pode vir disfarçado das mais diversas
formas. Pode ser um olhar, um filme, um sorriso, um poema, um romance, uma
letra de música, um sinal de que a chuva não demora a chegar, um efusivo aperto
de mão... tudo pode, e deve, ser lido como um grande texto. E todo o
conhecimento que o homem adquire ao longo de sua vida deve ser visto como
instrumentos para leitura da realidade que nos cerca. Não é por acaso que o
grande educador Paulo Freire, em uma de suas frases mais conhecidas, diz que:
“a leitura do mundo precede a leitura da palavra, daí que a posterior leitura
desta não possa prescindir da continuidade da leitura daquele”[1].
Mas como guardar tanta informação?
Como transmitir os inúmeros conhecimentos adquiridos após séculos e mais
séculos de experiências humana? Apenas com base em textos orais? Claro que não!
Por melhor que seja a memória do homem, ela será sempre limitada. Para tentar
preencher tal lacuna, surge a escrita e, muito tempo depois dela, uma das
maiores invenções do homem: o livro.
Embora hoje, ainda em princípios do século XXI, muitos preconizem a morte do livro em sua forma física, ele continua vivo e sendo (re)editado, mesmo com o surgimento de novas tecnologias, e não se pode negar a importância dele para todo o progresso da humanidade. Afinal de contas:
A
presença do livro na nossa cultura deu-se, pois, de forma fundante e
avassaladora: civilização pela escrita, ela seria – como se concebia até bem
pouco – a chave com a qual abrimos as portas da História. Vivemos, em
conseqüência, numa sociedade grafocêntrica, embora se saiba que essa posição
conferida à palavra escrita não significa exclusividade, não só porque há
culturas que dela prescindem como porque, na atualidade, confere-se à imagem
uma nova dimensão. Tal postura não impede, no entanto, que nos aproximemos do
livro, um dos objeto-simbolo da modernidade, com certa reverência. [2]
Com o aparecimento do livro, os
textos, que antes podiam perder-se facilmente nas encruzilhadas do tempo e do
espaço, ganharam um elemento norteador, um meio de perpetuação que ia muito
além da memória humana e das incertezas das transmissões orais. A mesma
história poderia agora ser contada dezenas, centenas, milhares de vezes, sem
que uma vírgula sequer fosse alterada. Afinal de contas verba volant, scripta manent[3]. Um
autor poderia finalmente grafar, quando quisesse e lhe fosse útil, seu nome na
portada de uma obra e dizer bem alto que ele havia criado aquela história. Não
haveria mais dúvidas sobre que realmente era o autor de uma obra. Os grandes
heróis, as grandes aventuras finalmente poderiam ser compartilhadas com pessoas
das mais diversas partes do mundo, sem que alguém precisasse perder a vida no
interminável trabalho de transcrever manualmente o conteúdo de uma obra.
Mas o mundo não é tão arrumadinho
assim. Passada a euforia da impressão dos muitos exemplares, diversas polêmicas
surgiram. Será que o nome que estava na capa do livro correspondia exatamente a
quem criou a história? Será que a mesma história era lida da mesma forma
incontáveis vezes? Até onde vai a noção de originalidade e de criatividade?
Quais os limites que separam plágio e intertexto... Tantas perguntas... Mínimas
respostas...
Dúvidas e mais dúvidas se
multiplicam até hoje. Será que Homero realmente existiu ou tudo não passou de
mais uma invenção dos criativos gregos? E se ele não existiu realmente, quem
seria o verdadeiro autor (ou autores) da Ilíada
e da Odisséia? O grande bardo inglês
William Shakespeare criou Romeu e Julieta
ou apenas transformou em peça teatral uma lenda tantas vezes contada e
recontada pelas gerações anteriores? Até onde Eça de Queirós, ao escrever sobre
o amor adúltero de Luísa
Para provocar mais discussões ainda, o
escritor argentino Jorge Luis Borges ainda escreveu Pierre Menard, el autor del Quijote, no qual discute a questão da
autoria. Pierre Menard é um escritor cuja “ambição era produzir algumas páginas
que coincidissem - palavra por palavra e
linha por linha – com as de Miguel de Cervantes”[4],
mesmo assim, o hipotético autor da “nova” obra a considera original, pois são
construídas em momentos históricos distinto e com diferentes motivações. No
final do conto, o narrador comenta que:
Menard
(talvez sem querê-lo) enriqueceu, mediante uma técnica nova, a arte fixa e
rudimentar da leitura: a técnica do anacronismo deliberado das atribuições
errôneas. Essa técnica de aplicação nos leva a percorrer a Odisséia como se
fosse posterior à Eneida e o livro Le
Jardin du Centaure de Madame Henri Bachelier como se fosse de Madame Henri
Bachelier. Essa técnica povoa de aventura livros mais pacíficos. Atribuir a
Louis Ferdinand Céline ou a James Joyce a Imitação
de Cristo não é suficiente renovação dessas tênues advertências
espirituais?[5]
Os questionamentos levantados no conto
borgeano levam a diversos outros concernentes à natureza da recepção das obras
ao longo dos tempos. Por que será que A
Arte de Amar de Ovídio foi chamada de obscena na Roma antiga e hoje é tida
como obra de bom gosto artístico? Por que razão livros como O Sofá (de Clébillon Fils), Teresa Filósofa (autor desconhecido ) e Fanny Hill (de John Cleland) foram tidos
como verdadeiros lixos literários na época e hoje são encontrados em livraria
se bancas de revista de todo o Brasil e tratados como obras de inovação
literária? Como serão vistos daqui há vinte, trinta ou cem anos livros como O Doce Veneno do Escorpião, de Bruna
Sufistinha? São perguntas praticamente sem resposta. Mas que trazem dentro de
si pelo menos uma informação inconteste: os textos não mudaram, mas os leitores
de hoje são bem diferentes daqueles que liam essas mesmas obras antigamente. E
o contexto histórico-geográfico é capaz de alterar a recepção de uma obra e/ou
de um autor.
Uma outra dúvida levantada foi com
relação à autenticidade do texto. De um modo ou de outro, todo escritor tem que
primeiro ser um grande leitor. Então é natural que durante a confecção de seu
texto ele remeta (de modo consciente ou não) a várias de suas leituras. É
impossível, por exemplo, para um amante da literatura, ler Bocage e não pensar
nos poemas de Camões; é difícil ler A Eneida,
de Virgílio, e não pensar nas epopéias homéricas; assim também, somente uma
pessoa muito desatenta, lerá o badalado best seller Código da Vinci e não
perceberá as referências à Bíblia e à
História da Arte.
Mas, ao longo da História, o livro também teve seus momentos de aparente insegurança. Por diversas vezes, o boato de que o livro já estava com seus dias contados ganhou as ruas. Alguns inventos foram tidos como inimigos da obra impressa: o rádio, o cinema, a televisão, a internet... Contudo, de uma forma ou de outra, todas essas invenções acabaram contribuindo para a difusão de textos que antes eram exclusivos dos livros. As novelas de rádio fizeram com que nossos avós entrassem em contato com tantos textos clássicos. A televisão e o cinema até hoje bebem nas páginas dos livros, buscando sempre entreter um público cada vez mais ansioso de aventuras, de mistérios e de histórias de amor. A internet, a aparentemente o mais temível inimigo dos livros na atualidade, vem aos pouco se tornando uma espécie de biblioteca virtual, um verdadeiro repositório de textos de todos os tipos e de todos os estilos, criando novas alternativas tanto para o leitor comum quanto para o pesquisador, conforma nos diz o professor José Luís Jobim:
É
possível também que, por parte dos usuários, haja no futuro a questão da
escolha de por qual meio acessar qual texto. A biblioteca de Stanford oferece
on-line e em papel os periódicos acadêmicos que considera mais relevantes a
biblioteca do Centre Pompidou, na França, oferece o jornal
De qualquer forma, não se pode negar
que o espaço do livro como objeto físico ainda perdurará por muito tempo, mesmo
porque “não se pode negligenciar ainda o desconforto da leitura em tela de
computador: se, para os textos curtos, não parece haver tanto problema, para
textos longos a leitura continuada é bastante exaustiva”[7].
Além disso, um livro pode também ser visto como um fetiche incompreendido por muitos, mas disputado por indivíduos de diversas esferas sociais. Livro pode ser companhia, poder ser passado, futuro ou presente, como metaforiza o poeta Abraão Teixeira:
O professor Gabriel Perissé, em um volume inteiramente dedicado aos livros e à leitura faz a seguinte declaração de amor:
Abro um livro, e para mim se abrem portas e comportas. Sou convidado a entrar em mim mesmo, percorrendo as linhas e entrelinhas do texto. O texto é um mapa cujo destino estou para descobrir. O livro me leva às portas do indecifrável, que se torna indecifrável no exato momento em que começo a decifrá-lo. E o que devo fazer? Que destino escolher, eu que já nasci com o destino de não ser fatalista?[9]
Para finalizar este breve trabalho, que é apenas um embrião a se desenvolver em outros estudos mais aprofundados, nada mais pertinente que as palavras do escritor Gaúcho Moacyr Scliar, que, pela hipotética voz do sábio Salomão antevê o futuro dos livros.
Claro,
o livro como objeto também é perecível. Mas o conteúdo do livro,
não. É uma mensagem que passa de geração em geração, que fica na cabeça das
pessoas. E que se espalha pelo mundo. O livro é dinâmico. O livro se dissemina
como a semente que o vento leva. [10]
REFERÊNCIAS
CITADAS
BORGES, Jorge
Luis. Obras Completas I. São Paulo:
Globo, 1998
CAMBRAIA, César
Nardelli. Introdução à crítica textual.
São Paulo: Martins Fonte, 2005.
FREIRE, Paulo. A importância do ato de ler em três artigos
que se completam. 43 ed. São Paulo: Cortez, 2002.
JOBIM, José Luís
(org.) Literatura e informática. Rio
de Janeiro: Eduerj, 2005
PERISSÉ,
Gabriel. Elogio da Leitura. Barueri:
Manolé, 2005.
SCLIAR, Moacyr. A mulher que escreveu a Bíblia. São
Paulo: Companhia das Letras, 2007
TEIXEIRA,
Abraão. Pensando
WALTY, Ivete Lara Camargo et all. Palavra e imagem: leituras cruzadas. 2ed. Belo Horizonte:
Autêntica, 2006.
[1] FREIRE,
Paulo. A importância do ato de ler em
três artigos que se completam. 43 ed. São Paulo: Cortez, 2002. pág. 11.
[2] WALTY,
Ivete Lara Camargo et all. Palavra e
imagem: leituras cruzadas. 2ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2006. pág. 21.
[3]
TRADUÇÃO: As palavras voam, mas permanecem quando são escritas.
[4] BORGES,
Jorge Luis. Obras Completas I. São
Paulo: Globo, 1998. Pág. 493.
[5] Idem,
pág. 498.
[6] JOBIM,
José Luís. Autoria, leitura e bibliotecas no mundo digital. In; JOBIM, José
Luís (org.) Literatura e informática. Rio de Janeiro: Eduerj, 2005. pág.
129-130.
[7]
CAMBRAIA, César Nardelli. Introdução à crítica textual. São Paulo: Martins
Fonte, 2005. Pág. 186.
[8]
TEIXEIRA, Abraão. Pensando
[9] PERISSÉ,
Gabriel. Elogio da Leitura. Barueri: Manolé, 2005. Pág. 09.
[10] SCLIAR,
Moacyr. A mulher que escreveu a Bíblia.
São Paulo: Companhia das Letras, 2007. Pág. 88.
Um assunto maravilhoso. Já acho muito confortável a leitura de livros em telas. Obrigada pelo excelente artigo.
ResponderExcluirObrigado pela leitura e pelo carinho.
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