terça-feira, 27 de fevereiro de 2024

UM CANTO PARA A LIBERDADE

 

UM CANTO PARA A LIBERDADE

José Neres

               BRASIL, Assis. O cantor prisioneiro. 11ª ed. São Paulo: Editora Moderna, 1987.


                Sem perceber que estava em perigo, um sabiá avista um pedaço de goiaba e se aproxima para saborear a fruta. Mal toca o alimento, porém, percebe que uma porta se fecha atrás de si. A partir desse momento, tudo o que resta ao sabiá é sonhar em recuperar sua liberdade, voltar para sua família e poder ajudar sua esposa a cuidar dos filhotes do casal. Esse é, de modo geral, o enredo do livro O cantor prisioneiro, um dos trabalhos do escritor piauiense Assis Brasil (1929-2021) destinado ao público infanto-juvenil, que começa a ter os primeiros contatos com narrativas mais longas e com articulação textual mais complexa.

                O livro tem menos de 40 páginas e recebeu ilustrações de Grace Waddington, que conseguiu captar a essência da narrativa e criar imagens que dialogam com o texto, deixando-o ainda mais interessante e envolvente.

                A narrativa é composta basicamente por três personagens – o sabiá, o caçador e a mãe do caçador, todos funcionando como elementos tipificados, ou seja, como personagens representantes de determinado grupo social. Dessa forma, o sabiá remete ao ser oprimido, àquele indivíduo que está preso nas malhas de uma estrutura social que exige um trabalho (no caso, cantar bem) em troca de água e de alimento, a quem só resta o direito de sonhar com a liberdade e com um futuro melhor. O caçador é a representação do opressor, daquele que usa seu poderio físico e econômico para poder manter os menos privilegiados em um cativeiro com rações controladas de água e alimento, como se isso fosse um favor prestado a quem perdeu sua liberdade. A mãe do caçador simboliza a rebeldia e ao mesmo tempo uma atávica dependência emocional. Ela não concorda com o engaiolamento dos pássaros, preza pela liberdade, mas não deseja contrariar o filho, já que este lhe deu o sabiá de presente.

                O que aparentemente pode ser uma história simples, pode também ser lido como denúncia sobre diversas fraturas pessoais e sociais que podem passar despercebidas em uma primeira leitura. Um exemplo disso é quando o autor concentra seus esforços em descrever a tristeza do sabiá por causa de sua privação de liberdade e o consequente afastamento de sua família. Em alguns momentos, é ressaltado o trauma sofrido pelo protagonista a partir do momento em que o sabiá, ao ser alimentado, recusa as goiabas servidas, pois essa fruta traz para ele a lembrança do momento de sua prisão. Em diversas passagens do livro, a narrativa se concentra na angústia do sabiá ao imaginar as dificuldades de sua companheira na luta diária para alimentar os filhotes.

                Algumas questões sociais são também abordadas no livro. As mais evidentes delas são a da escravização e do trabalho forçado. O caçador deixa bem claro, e o prisioneiro acaba percebendo isso, que a oferta de alimento está diretamente relacionada com sua capacidade de cantar bem por um maior intervalo de tempo, ou seja, quanto mais o passarinho cantar, melhor será o seu “salário”, em uma clara analogia com a exploração sofrida pelo proletariado. Ao mesmo tempo, paira no texto a ideia de que um ser vivo pode ser afastado de seus familiares para trabalhar de modo forçado para quem detenha o poder de decisão. ou seja, o livro pode ser um bom exemplo metafórico da histórica exploração sofrida pelos seres menos favorecidos.

                As questões ecológicas e ambientais também são exploradas no livro. Utilizando o caso dos pássaros como exemplo, Assis Brasil acabou denunciando o uso irregular de armadilhas para prender e até comercializar animais silvestres. Os efeitos nocivos dessa ação aparecem sutilmente no decorrer da obra.

                O cantor prisioneiro é um livro que tem que tem como leitor preferencial o público infanto-juvenil, mas que também pode ser muito bem aproveitado por pais, professores e demais adultos. Claro que cada uma das leituras tem suas especificidades e graus de profundidade, mas, de qualquer modo, o leitor terá em suas mãos um livro bem escrito e que pode servir para levantar muitos pontos para discussão e reflexão. O canto do sabiá no livro às vezes pode ser interpretado como de tristeza ou de alegria, mas sempre será um canto pela liberdade, não apenas dele, mas de todos os seres vivos.

                Vale a pena mergulhar nessa singela e bem elaborada alegoria escrita pelo saudoso Assis Brasil.

 

BRASIL, Assis. O cantor prisioneiro. 11ª ed. São Paulo: Editora Moderna, 1987.

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