UM CANTO PARA A LIBERDADE
José Neres
Sem perceber que estava em perigo, um
sabiá avista um pedaço de goiaba e se aproxima para saborear a fruta. Mal toca
o alimento, porém, percebe que uma porta se fecha atrás de si. A partir desse
momento, tudo o que resta ao sabiá é sonhar em recuperar sua liberdade, voltar
para sua família e poder ajudar sua esposa a cuidar dos filhotes do casal. Esse
é, de modo geral, o enredo do livro O cantor prisioneiro, um dos
trabalhos do escritor piauiense Assis Brasil (1929-2021) destinado ao público
infanto-juvenil, que começa a ter os primeiros contatos com narrativas mais
longas e com articulação textual mais complexa.
O livro tem
menos de 40 páginas e recebeu ilustrações de Grace Waddington, que conseguiu
captar a essência da narrativa e criar imagens que dialogam com o texto,
deixando-o ainda mais interessante e envolvente.
A
narrativa é composta basicamente por três personagens – o sabiá, o caçador e a
mãe do caçador, todos funcionando como elementos tipificados, ou seja, como
personagens representantes de determinado grupo social. Dessa forma, o sabiá
remete ao ser oprimido, àquele indivíduo que está preso nas malhas de uma
estrutura social que exige um trabalho (no caso, cantar bem) em troca de água e
de alimento, a quem só resta o direito de sonhar com a liberdade e com um
futuro melhor. O caçador é a representação do opressor, daquele que usa seu
poderio físico e econômico para poder manter os menos privilegiados em um
cativeiro com rações controladas de água e alimento, como se isso fosse um
favor prestado a quem perdeu sua liberdade. A mãe do caçador simboliza a
rebeldia e ao mesmo tempo uma atávica dependência emocional. Ela não concorda
com o engaiolamento dos pássaros, preza pela liberdade, mas não deseja
contrariar o filho, já que este lhe deu o sabiá de presente.
O que
aparentemente pode ser uma história simples, pode também ser lido como denúncia
sobre diversas fraturas pessoais e sociais que podem passar despercebidas em
uma primeira leitura. Um exemplo disso é quando o autor concentra seus esforços
em descrever a tristeza do sabiá por causa de sua privação de liberdade e o
consequente afastamento de sua família. Em alguns momentos, é ressaltado o
trauma sofrido pelo protagonista a partir do momento em que o sabiá, ao ser
alimentado, recusa as goiabas servidas, pois essa fruta traz para ele a
lembrança do momento de sua prisão. Em diversas passagens do livro, a narrativa
se concentra na angústia do sabiá ao imaginar as dificuldades de sua
companheira na luta diária para alimentar os filhotes.
Algumas
questões sociais são também abordadas no livro. As mais evidentes delas são a
da escravização e do trabalho forçado. O caçador deixa bem claro, e o
prisioneiro acaba percebendo isso, que a oferta de alimento está diretamente
relacionada com sua capacidade de cantar bem por um maior intervalo de tempo,
ou seja, quanto mais o passarinho cantar, melhor será o seu “salário”, em uma
clara analogia com a exploração sofrida pelo proletariado. Ao mesmo tempo,
paira no texto a ideia de que um ser vivo pode ser afastado de seus familiares
para trabalhar de modo forçado para quem detenha o poder de decisão. ou seja, o
livro pode ser um bom exemplo metafórico da histórica exploração sofrida pelos
seres menos favorecidos.
As
questões ecológicas e ambientais também são exploradas no livro. Utilizando o
caso dos pássaros como exemplo, Assis Brasil acabou denunciando o uso irregular
de armadilhas para prender e até comercializar animais silvestres. Os efeitos
nocivos dessa ação aparecem sutilmente no decorrer da obra.
O
cantor prisioneiro é um livro que tem que tem como leitor preferencial o
público infanto-juvenil, mas que também pode ser muito bem aproveitado por
pais, professores e demais adultos. Claro que cada uma das leituras tem suas
especificidades e graus de profundidade, mas, de qualquer modo, o leitor terá
em suas mãos um livro bem escrito e que pode servir para levantar muitos pontos
para discussão e reflexão. O canto do sabiá no livro às vezes pode ser
interpretado como de tristeza ou de alegria, mas sempre será um canto pela
liberdade, não apenas dele, mas de todos os seres vivos.
Vale
a pena mergulhar nessa singela e bem elaborada alegoria escrita pelo saudoso
Assis Brasil.
BRASIL, Assis. O cantor prisioneiro. 11ª ed. São
Paulo: Editora Moderna, 1987.
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