sexta-feira, 23 de maio de 2025

CONTO: FORÇA

 

Imagem criada com auxílio de Inteligência Artificial 


FORÇA 

José Neres 


Desejo-lhe muita força neste momento tão difícil de sua vida.


Aquela mensagem deixada em uma rede social por uma amiga a quem não via há mais de duas décadas fez com que ela estremecesse da cabeça aos pés.

Teve que pegar o ônibus às pressas para não perder aquele momento.

De todas as palavras da língua portuguesa, aquela era a que mais lhe causava medo - força.

Lembrou-de quando a tia lhe narrara a força que sua mãe havia feito para que ela nascesse em um parto complicadíssimo. O resultado foi nunca ter conhecido a própria mãe e passar a vida sendo considerada culpada pela família pela morte de Dona Inês.

Lembrou-se também da força do braço erguido daquele homem a esbofetear sua cara quando lhe negou um beijo depois da festa da igreja. Da força para tentar se desvencilhar dele quando, certa madrugada, ele invadiu o quarto. Da força daquele pênis ereto a invadir suas carnes. Da força que fazia ao vomitar escondida sem poder contar que estava grávida. Da força que fez para suportar a dor de ter aqueles objetos dentro de si cortando aquele inocente que não poderia nascer. Da força da correnteza que, durante uma tempestade, levou para um bueiro os restos de um filho que jamais conheceu. Da força que fazia naquele trabalho pesado que executava seis vezes por semana para se sustentar seus precisar ouvir humilhações 

Não. Definitivamente não. Estar ali no enterro daquela tia que a criou como se fosse uma estranha, que tantas vezes a obrigou a dormir com fome, que fingiu não perceber os repetidos abusos sexuais que ela sofrera, que a obrigara a tirar a criança para não incriminar o tio bêbado e tarados não era um dos momentos difíceis de sua vida.

Agora, ali, diante do caixão aberto, era preciso fazer força para não transformar aquele singelo sorriso de canto de boca em uma alegre gargalhada. 

Força!...

12 comentários:

  1. Muitas vezes, nobre poeta, o último beijo é um beijo de despedida, mas também é um beijo de lembrança, um beijo que nos faz recordar de tudo o que foi, de tudo o que poderia ter sido.

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    1. Obrigado. A literatura tem que ser uma voz de denúncia e de alerta.

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  2. Triste e bonita a força desse conto.

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    1. Obrigado. Mesmo da terrível realidade podemos tirar algumas lições.

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  3. Importante conto para pensarmos a complexidade da vida e da própria língua [portuguesa]. Ótimo conto!

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  4. Um conto que nos leva a refletir sobre uma palavra tão profunda, tão cheia de significados, mas que muitas vezes é a marca de um sufoco que nunca pôde ser externado.

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    1. Infelizmente. Mas é preciso alertar e denunciar

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  5. Uma triste narração. Bem escrita. Nos lembra essas situações veladas que muitos sofrem. Um mal que nos acompanha. Espero que tenha fim.

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  6. Também espero que esse tormento um dia te há fim.

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  7. Estamos a subverte o uso habitual da palavra “força”, revelando as violências físicas, emocionais e simbólicas que marcaram a vida da protagonista. Cada lembrança é um golpe, ressignificando o termo como sinônimo de dor, resistência forçada e silenciamento. O clímax no velório da tia — cúmplice das violências — encerra com ironia e libertação contida. Ao final, “fazer força” deixa de ser suporte e se torna repressão da alegria por um alívio tardio. Temos a denuncia, com contundência e sensibilidade, as marcas do abuso e da hipocrisia social, provocando profunda reflexão sobre o que, afinal, significa desejar força a alguém.

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  8. Força. Uma palavra prenhe de sentidos, que chega com força. Uma pedra que alicerça e faz desmorronar.

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