segunda-feira, 26 de maio de 2025

ARTIGO: MÚSICA E LITERATURA

 Novos artigos de segunda #33


MÚSICA E LITERATURA

José Neres

 


É bastante antiga a relação intrínseca entre a música e a literatura. O Filósofo grego Aristóteles, em sua Poética, já destacava a importância da música na composição das peças teatrais e da melopeia para a fruição das obras literárias.

Na Idade Média, a relação do texto literário com a musicalidade das palavras se torna ainda mais intensa, ao ponto de a poesia medieval, durante determinado espaço de tempo, receber a nomenclatura de cantiga (de amor, amigo, escárnio e maldizer), não apenas por ser acompanhada por instrumentos musicais, mas também pelo ritmo de leitura imposto pelos versos dos poemas.

Atualmente, em uma época em que praticamente todo mundo circula conectado a fones de ouvido, a música tem se tornado cada vez mais uma companhia constante de pessoas de diferentes faixas etárias e sociais. Já a literatura às vezes é tida como luxo e outras vezes como lixo. É cada dia mais raro encontrar pessoas com livros nas mãos. Claro que as novas tecnologias permitem que toda uma biblioteca caiba em um pequeno aparelho de telefonia móvel, mas nem sempre esse é o objetivo desses usuários.

Mesmo assim, a música nunca deixou de ser uma forma de fazer uma intermediação entre o leitor e as obras literária, embora isso nem sempre seja perceptível à primeira vista, com é o caso de “Uma barata chamada Kafka”, gravada em 1989 pelo grupo musical Inimigos do Rei. Quem ouve distraidamente a canção, sem atentar para o título, talvez não perceba o trabalho artístico com a linguagem no trecho abaixo, que remete ao livro A Metamorfose, de Franz Kafka:

Ela disse sim! Vem cá ficar comigo
Sim! Gosta de tudo que eu gosto
Sim! Vem cá ficar comigo
Sim! Vem, Kakfa.

As obras de Jorge Amado, além de serem diversas vezes adaptadas para a televisão e para o cinema, também ganharam algumas versões musicais, como é o caso de “Jubiabá”, música interpretada por Gerônimo Santana, inspirada no romance homônimo; “Tieta”, famosa composição de Luiz Caldas; “Luz de Tieta”, escrita e interpretada por Caetano Veloso; “Alegre menina”, composição de Dorival Caymmi e Jorge Amado, que tem como base o livro “Gabriela Cravo e Canela”. Esse romance também serviu como base para Dorival Caymmi escrever o clássico “Modinha para Gabriela” e eternizar na memória das pessoas os seguintes versos:

Eu nasci assim eu cresci assim
E sou mesmo assim
Vou ser sempre assim Gabriela
Sempre Gabriela

Os admiradores da obra infanto-juvenil de Monteiro Lobato provavelmente se lembram da abertura do programa televisivo que trazia a voz de Gilberto Gil cantando essa emblemática letra inspirada em “O Sítio do Pica-Pau Amarelo”. Quando se ouve alguém falar sobre essa obra, geralmente vem à memória os seguintes versos:

 

Marmelada de banana
Bananada de goiaba
Goiabada de marmelo
Sítio do Pica-Pau Amarelo
Sítio do Pica-Pau Amarelo
Boneca de pano é gente
Sabugo de milho é gente
O sol nascente é tão belo
Sítio do Pica-Pau Amarelo
Sítio do Pica-Pau Amarelo

 

Raimundo Fagner sempre valorizou a relação entre música e literatura, como é o caso de “Motivo”, poema de Cecília Meireles por ele musicado; “Fanatismo”, inspirado em poema de Florbela Espanca; e “Traduzir-se”, poema de Ferreira Gullar que também ficou imortalizado por esse cantor cearense. Sendo que o autor do Poema Sujo – que revisitou as “Bachianas Brasileiras nº 2”, de Heitor Villa-Lobos - foi revisitado em outras composições musicais, como “Bela, Bela”, interpretada por Milton Nascimento, “Trenzinho do Caipira”, que conta com diversos intérpretes, e “Vambora”, cantada por Adriana Calcanhotto, onde é possível encontrar alusões a livros de  Ferreira Gullar e de Manuel Bandeira.

O grupo musical Quinteto Violado gravou “Palavra Acesa”, uma adapt(ação musical de um poema de José Chagas 1924-2014).  Um dos grandes sucessos de Chico Buarque de Hollanda é “O enterro de um lavrador”, trecho do poema “Morte e Vida Severina”, de João Cabral de Melo Neto (1920-1999). O poema “Go back”, de Torquato Neto  foi gravado pelo grupo Titãs.

Trechos da Bíblia e um soneto de Luís Vaz de Camões são cantados pelo grupo Legião Urbana em “Monte Castelo”, uma das composições mais representativas desse famoso grupo musical. Admirador da literatura, Raul Seixas foi buscar no livro “As Minas do Rei Salomão” de Henry Rider Haggard (1856-1925) a inspiração para música homônima ao romance do escritor inglês, aproveitando para citar o Dom Quixote na letra da composição. Os ensinamentos de Maábarata no livro “Bhagavad Gita” inspiraram Raul Seixas e Paulo Coelho na composição de “Gita”, cujos versos abaixo são constantemente relembrados

Eu sou a vela que acende
Eu sou a luz que se apaga
Eu sou a beira do abismo
Eu sou o tudo e o nada

Admirável gado novo” (de Zé Ramalho) e “Admirável chip novo” (de Pitt), apesar de trazerem concepções estéticas e abordagens temáticas distintas, são inspiradas no livro “Admirável mundo novo”, do escritor inglês Aldous Huxley (1894-1963). O romance de Eça de Queiroz (1845-1900)  “O primo Basílio” serviu de inspiração para “Amor, I love you”, grandioso sucesso na voz de Marisa Monte.

Às vezes, a versão musical de determinado texto se torna tão conhecida que muitas pessoas confundem o intérprete com autor original da obra. É o que ocorreu com “E agora José” – poema de Carlos Drummond de Andrade (1902-1987)- que fez muito sucesso na voz de Paulo Diniz, responsável também pala versão musicalizada do poema “Vou-me embora pra Pasárgada”, de Manuel Bandeira (1886-1968).

Esse é um tema que não se esgota em poucas páginas. Cada pessoa, provavelmente, terá em sua mente uma relação de outras peças musicais inspiradas na literatura. O importante é lembrar que a música pode ser também uma forma de aproximar os leitores das obras literárias ou de outras formas de expressão artística.

 

 

 

 


11 comentários:

  1. Sensibilizador. A música nos aproxima do conhecimento. Agradeço pelas lembranças.

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    1. Um excelente artigo. Parabéns pela iniciativa, prof. José Neres.

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  2. Bob Dylan. Vc esqueceu Bob Dylan, talvez pela referência exclusiva à lngua portuguesa. Prêmio Nobel de Literatura pelas suas letras e canções. Uma forma potente de homenagear essa junção tão bem citada pelo mestre.Parabéns.

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  3. 👏🏾👏🏾👏🏾👏🏾🥰

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  4. Texto muito rico, professor. Parabéns!

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  5. Eu utilizei Fanatismo, poema da Florbela Espanca musicalizado e interpretado por Fagner, para abertura da disciplina Literatura Portuguesa, do Simbolismo às Tendências Contemporâneas e os alunos não sabiam que era um poema.

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  6. Gostei muito da leitura desse texto ✨
    Seu texto é uma verdadeira obra-prima ao explorar com profundidade e sensibilidade a intrínseca relação entre música e literatura ao longo da história. A forma como você contextualiza desde Aristóteles até as manifestações contemporâneas demonstra um domínio impressionante do tema, aliado a uma clareza que torna a leitura envolvente e acessível.💡

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  7. Gratidão pelo texto e por conseguinte, as reflexões! Para os "casados e amantes" da literatura a relação desta com a música é realmente algo encantador.

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  8. Clara Nunes cantou Sagarana, homenagem ao livro do Guimarães Rosa; em 2024 a Imperatriz Leopoldinense levou para a Sapucaí o enredo baseado no livro O testamento da cigana Esmeralda, de Leandro Gomes de Barros.

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