AS ÚLTIMAS LINHAS DE JOÃO UBALDO RIBEIRO
José Neres
(Professor, Membro da
AML, ALL, APB e da Sobrames-MA)
Acredito
que todas as pessoas apaixonadas pela literatura devam passar por inúmeros
momentos de infidelidade literária, ou seja, apaixonamo-nos hoje pela obra de
um escritor ou de uma escritora, pensamos que ali naquelas páginas está nosso
par perfeito. Porém, dias, semanas, meses ou mesmo horas depois, somos
apresentados a outros livros, a outros estilos, a outros escritores e
mergulhamos em uma nova paixão, muitas vezes avassaladora.
Ao
longo de minhas tantas décadas de leitura já me vi encantado por dezenas de
autores e autoras que acabaram fazendo parte de minha vida, já que, no caso das
infidelidades literárias, não é possível abandonar a paixão antiga só por
estarmos flertado com um novo alvo de atenções. Nada disso! Sempre é possível
dividir-se entre várias paixões sem prejuízo para nenhuma delas. Talvez apenas
nosso bolso sinta os impactos dessas visitinhas às muitas estantes de nossas
poucas livrarias.
Clarice
Lispector, Fernando Sabino, Assis Brasil, Ferreira Gullar, Carolina Maria de
Jesus, Mario Quintana, Carlos Drummond de Andrade, Lygia Fagundes Telles, Laura
Esquivel, Umberto Eco, Ítalo Calvino, Antonio Buero Vallejo, Franz Kafka, Aluísio
Azevedo, Chimamanda Ngozi Adichie, Josué Montello, José Chagas, Pepetela,
Cecília Meireles, João Guimarães Rosa, Tolstoi, Bram Stoker, Lima Barreto,
Machado de Assis, Isabel Allende, Waldemiro Viana, Gonçalves Dias, Álvares de
Azevedo, Castro Alves, Patativa do Assaré, Mia Couto, Agatha Christie,
Graciliano Ramos, Jorge Luis Borges, Nelson Rodrigues, Rachel de Queirós, Humberto
de Campos, Murilo Rubião e Rubem Fonseca são algumas das inúmeras e silenciosas
testemunhas desses muitos momentos em que foi impossível aceitar ter apenas uma
companhia.
Nesse
rol posso adicionar o nome do baiano João Ubaldo Ribeiro (1941-2014), escritor
que chamou minha atenção desde 1999, quando li A Casa dos Budas Ditosos, que à época fazia parte da Coleção Plenos Pecados. (Nota triste:
Uma antiga aluna pediu esse livro emprestado e nunca mais apareceu em sala de
aula. Dizem as más línguas que ela fugiu com o namorado para outro estado. O
amor é lindo, mas bem que poderia ter devolvido aquele belo livrinho de capa
vermelha e o nome luxúria em alto-relevo). Possivelmente como forma de me
livrar desses traumas, recentemente comprei esse livro em nova edição, mas não
tem o charme da edição original. Acho que o trauma continua.
Alguns
anos depois, em um dos meus aniversários, a querida amiga Geusiléia Silveira me
presenteou com um exemplar de O
Conselheiro Come, um belo livro de crônicas de João Ubaldo Ribeiro e que
leva o leitor a refletir sobre como o intelectual é tratado em nossa sociedade.
Reli esse livro diversas vezes e sempre o recomendo para quem gosta de entrar
em contato com um estilo ágil, bem-humorado e carregado de ácidas ironias.
A
partir desse momento, esse escritor começou a ter lugar garantido em minha
sempre abarrotada mesa e em minhas estantes. Vez ou outra revisito, limpo e
folheio A arte e a ciência de roubar
galinha, O rei da noite (que
tenho, mas confesso que não li ainda), Setembro não tem sentido (livro de
estreia de Ubaldo), Viva o povo
brasileiro (um clássico!), O sorriso
do lagarto (que fez sucesso também em sua adaptação para a TV), Sargento Getúlio (sucesso também nos
cinemas), Miséria e grandeza do amor de
Benedita (esquecido e até mal falado, mas que é meu preferido), Diário
do Farol (gostei bastante!), Vencecavalo
e o outro povo (maravilhosa alegoria sobre os tempos e a política atual),
livros que dificilmente serão emprestados!
Recentemente,
fiquei sabendo que à época de seu falecimento, o escritor baiano preparava um
livro que traria diversos contos ambientados no Leblon, bairro onde o autor de O Feitiço da Ilha do Pavão morou por
cerca de duas décadas e que ele conhecia profundamente. Desses contos, apenas
dois haviam sido completados e foram publicados sob o título de Noites Lebroninas (Editora Objetiva,
2018, 103 páginas). Não pensei duas vezes, pedi o livro e quando o gentil rapaz
dos Correios tocou a campainha e entregou a encomenda, iniciei a leitura.
Claro
que não irei aqui contar detalhes dos dois contos que compõem o livro, não irei
fazer os chamados spoilers, como
dizem os jovens de hoje. Irei apenas contar alguns breves detalhes para
conduzir quem nunca leu esse autor pelas veredas de sua prosa bem articulada.
Mas posso afirmar que nesse livro João Ubaldo Ribeiro continuou fazendo o que
sempre fez de melhor: destacou em cores vivas tipos comuns que poderiam passar
despercebidos em uma saga, mas que mereceram a atenção de um escritor que
dominava a técnica da construção de personagens.
Nesse
livro infelizmente incompleto, o leitor irá encontrar, no conto que dá nome ao
livro, um porteiro que frequenta uma festa de pessoas ricas, um médico que
ganha dinheiro apostando sobre a sobrevivência ou não de seus pacientes, além
de muitas outras peripécias. No segundo texto – intitulado O Cachorro Falafina e seu Dono Dagoberto (um dos melhores contos
que li recentemente) – temos um cachorro que tem a capacidade de escolher os
parceiros de seu dono e que é capaz de tudo para proteger aquele que considera
como grande amigo. O enredo é interessante e a execução foi primorosa.
No
prefácio do livro, Geraldo Carneiro lembra que “João Ubaldo Ribeiro é sempre um
humorista” e que o escritor baiano “construía seus livros de forma peculiar.
Primeiro escolhia o título. Depois, a epígrafe. Por fim, começava a escrever o
primeiro parágrafo”, sem ter um plano exato de como chegaria à conclusão de
seus textos. Possivelmente ele nem precisasse mesmo desses planos, tinha
habilidade suficiente para conduzir suas personagens pelas muitas trilhas pelas
quais um escritor menos experiente poderia se perder.
No
final da leitura fica o desejo que jamais será realizado de saber como seriam
os demais contos desse livro que marca a despedida de um mestre da literatura
brasileira.