sábado, 24 de agosto de 2024

artigo 2 - AS ÚLTIMAS LINHAS DE JOÃO UBALDO RIBEIRO

 

AS ÚLTIMAS LINHAS DE JOÃO UBALDO RIBEIRO

José Neres

(Professor, Membro da AML, ALL, APB e da Sobrames-MA)

 



                Acredito que todas as pessoas apaixonadas pela literatura devam passar por inúmeros momentos de infidelidade literária, ou seja, apaixonamo-nos hoje pela obra de um escritor ou de uma escritora, pensamos que ali naquelas páginas está nosso par perfeito. Porém, dias, semanas, meses ou mesmo horas depois, somos apresentados a outros livros, a outros estilos, a outros escritores e mergulhamos em uma nova paixão, muitas vezes avassaladora.

                Ao longo de minhas tantas décadas de leitura já me vi encantado por dezenas de autores e autoras que acabaram fazendo parte de minha vida, já que, no caso das infidelidades literárias, não é possível abandonar a paixão antiga só por estarmos flertado com um novo alvo de atenções. Nada disso! Sempre é possível dividir-se entre várias paixões sem prejuízo para nenhuma delas. Talvez apenas nosso bolso sinta os impactos dessas visitinhas às muitas estantes de nossas poucas livrarias.

                Clarice Lispector, Fernando Sabino, Assis Brasil, Ferreira Gullar, Carolina Maria de Jesus, Mario Quintana, Carlos Drummond de Andrade, Lygia Fagundes Telles, Laura Esquivel, Umberto Eco, Ítalo Calvino, Antonio Buero Vallejo, Franz Kafka, Aluísio Azevedo, Chimamanda Ngozi Adichie, Josué Montello, José Chagas, Pepetela, Cecília Meireles, João Guimarães Rosa, Tolstoi, Bram Stoker, Lima Barreto, Machado de Assis, Isabel Allende, Waldemiro Viana, Gonçalves Dias, Álvares de Azevedo, Castro Alves, Patativa do Assaré, Mia Couto, Agatha Christie, Graciliano Ramos, Jorge Luis Borges, Nelson Rodrigues, Rachel de Queirós, Humberto de Campos, Murilo Rubião e Rubem Fonseca são algumas das inúmeras e silenciosas testemunhas desses muitos momentos em que foi impossível aceitar ter apenas uma companhia.

                Nesse rol posso adicionar o nome do baiano João Ubaldo Ribeiro (1941-2014), escritor que chamou minha atenção desde 1999, quando li A Casa dos Budas Ditosos, que à época fazia parte da Coleção Plenos Pecados. (Nota triste: Uma antiga aluna pediu esse livro emprestado e nunca mais apareceu em sala de aula. Dizem as más línguas que ela fugiu com o namorado para outro estado. O amor é lindo, mas bem que poderia ter devolvido aquele belo livrinho de capa vermelha e o nome luxúria em alto-relevo). Possivelmente como forma de me livrar desses traumas, recentemente comprei esse livro em nova edição, mas não tem o charme da edição original. Acho que o trauma continua.

                Alguns anos depois, em um dos meus aniversários, a querida amiga Geusiléia Silveira me presenteou com um exemplar de O Conselheiro Come, um belo livro de crônicas de João Ubaldo Ribeiro e que leva o leitor a refletir sobre como o intelectual é tratado em nossa sociedade. Reli esse livro diversas vezes e sempre o recomendo para quem gosta de entrar em contato com um estilo ágil, bem-humorado e carregado de ácidas ironias.

                A partir desse momento, esse escritor começou a ter lugar garantido em minha sempre abarrotada mesa e em minhas estantes. Vez ou outra revisito, limpo e folheio A arte e a ciência de roubar galinha, O rei da noite (que tenho, mas confesso que não li ainda),  Setembro não tem sentido (livro de estreia de Ubaldo), Viva o povo brasileiro (um clássico!), O sorriso do lagarto (que fez sucesso também em sua adaptação para a TV), Sargento Getúlio (sucesso também nos cinemas), Miséria e grandeza do amor de Benedita (esquecido e até mal falado, mas que é meu preferido),  Diário do Farol (gostei bastante!), Vencecavalo e o outro povo (maravilhosa alegoria sobre os tempos e a política atual), livros que dificilmente serão emprestados!

                Recentemente, fiquei sabendo que à época de seu falecimento, o escritor baiano preparava um livro que traria diversos contos ambientados no Leblon, bairro onde o autor de O Feitiço da Ilha do Pavão morou por cerca de duas décadas e que ele conhecia profundamente. Desses contos, apenas dois haviam sido completados e foram publicados sob o título de Noites Lebroninas (Editora Objetiva, 2018, 103 páginas). Não pensei duas vezes, pedi o livro e quando o gentil rapaz dos Correios tocou a campainha e entregou a encomenda, iniciei a leitura.

                Claro que não irei aqui contar detalhes dos dois contos que compõem o livro, não irei fazer os chamados spoilers, como dizem os jovens de hoje. Irei apenas contar alguns breves detalhes para conduzir quem nunca leu esse autor pelas veredas de sua prosa bem articulada. Mas posso afirmar que nesse livro João Ubaldo Ribeiro continuou fazendo o que sempre fez de melhor: destacou em cores vivas tipos comuns que poderiam passar despercebidos em uma saga, mas que mereceram a atenção de um escritor que dominava a técnica da construção de personagens.

                Nesse livro infelizmente incompleto, o leitor irá encontrar, no conto que dá nome ao livro, um porteiro que frequenta uma festa de pessoas ricas, um médico que ganha dinheiro apostando sobre a sobrevivência ou não de seus pacientes, além de muitas outras peripécias. No segundo texto – intitulado O Cachorro Falafina e seu Dono Dagoberto (um dos melhores contos que li recentemente) – temos um cachorro que tem a capacidade de escolher os parceiros de seu dono e que é capaz de tudo para proteger aquele que considera como grande amigo. O enredo é interessante e a execução foi primorosa.

                No prefácio do livro, Geraldo Carneiro lembra que “João Ubaldo Ribeiro é sempre um humorista” e que o escritor baiano “construía seus livros de forma peculiar. Primeiro escolhia o título. Depois, a epígrafe. Por fim, começava a escrever o primeiro parágrafo”, sem ter um plano exato de como chegaria à conclusão de seus textos. Possivelmente ele nem precisasse mesmo desses planos, tinha habilidade suficiente para conduzir suas personagens pelas muitas trilhas pelas quais um escritor menos experiente poderia se perder.

                No final da leitura fica o desejo que jamais será realizado de saber como seriam os demais contos desse livro que marca a despedida de um mestre da literatura brasileira.

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