segunda-feira, 27 de janeiro de 2025

5 REFLEXÕES SOBRE LEITURA

 Novos artigos de segunda #18


Imagem criada com auxílio de Inteligência Artificial 


CINCO REFLEXÕES SOBRE LEITURA


José Neres 


1 - LIVROS NA GRANDE REDE

Nos primeiros dias do ano, passei algumas horas assistindo a vídeos dos chamados “influenciadores digitais” falando sobre uma das tecnologias mais analógicas que há: o livro.

Muitos faziam sugestões de leitura de autores e livros clássicos. Alguns demonstravam que entenderam apenas a superfície de algumas obras. Outros se mostravam indignados com o fato de que livro de que não gostaram ser considerado um clássico. Quase todos exibiam uma pilha de livros diante de si e falavam a quantidade de obras lidas no ano anterior ou faziam projeções do que pretendem ler neste ano que se inicia. 

Independentemente de gostar ou não das “análises”, resenhas e comentários, uma detalhe chamou minha atenção: como tem gente falando de livros na internet! Comprando, divulgando, sugerindo e comentando obras literárias. 

Que bom! Fico feliz! 

Há preciosidades perdidas no charco da internet.


2 - PARA QUE TANTA PRESSA?


Há muita gente confundindo quantidade de leitura com qualidade de leitura. 

Pouco adianta alguém dizer que leu 123 livros em 2024, se nem todos os livros foram devidamente digeridos.

Na minha concepção, um bom livro deve ser consumido com a mesma calma e paciência com que se saboreia um belo prato em um bom restaurante. 

Sou mais fã da leitura lenta, tranquila e saborosa do que da chamada “leitura dinâmica”. Se o texto é bom, nem tenho a menor pressa de que ele chegue ao fim. Se estou gostando da companhia das personagens, não quero que elas partam. 

Tenho até pressa para ler, mas não tenho pressa ao ler. 

Aprendi com o mestre Josué Montello que devemos ler “como um passarinho bebe água”, ou seja, pegamos um pouquinho do que lemos, levantamos a cabeça, contemplamos o céu, agradecemos pelas preciosidades que recebemos e voltamos para receber mais uma porção de sabedoria… Sem pressa!


3 - A IMPORTÂNCIA DA RELEITURA


Reler não é uma tarefa fácil. Muitas pessoas pensam que ler uma obra pela segunda, terceira ou quarta vez seja algo fácil. Para mim, não. 

Se for a releitura de um trabalho teórico, percebo a quantidade de detalhes importantíssimos que deixei passar na leitura anterior.

Caso seja o retorno a uma obra de ficção, tenho que tomar cuidado para que as antecipações dos fatos e o aparente conhecimento das ações não façam com que eu salte por cima de palavras que foram estrategicamente colocadas pelo autor.

Muitas vezes, sinto que estou a ler pela primeira vez um livro que já visitei tantas vezes. Sou surpreendido pelo cinismo de personagens que me espreitam e medem o grau de minha ignorância.


4 - LER POEMAS?


Quando ministrava aulas de Poesia espanhola e Hispanoamericana em uma Universidade Federal, certa vez fiz uma pergunta para a turma (cerca de oito alunos): “Vocês gostam de ler poemas? O silêncio foi constrangedor e mais constrangedores foram os comentários depois: “Detesto poesia”. “Não entendo nada”. “Quando o professor explica, até que entendo, mas depois vou ler e não lembro de nada”. “Deus me livre de poesia!”.”Prefiro uma dor de dente”...

Conversei com a colega que trabalhava com Estudo de Poesia de Língua Portuguesa. O desalento foi o mesmo. O máximo que os alunos conseguiram era parafrasear trechos dos poemas. Pouco conseguiam mergulhar nos aspectos fônicos, semânticos e estruturais dos poemas.

Lamentável. A leitura de poemas é realmente um desafio para todo e qualquer leitor. Mas também é uma forma prazerosa de entrar em contato com ideias e pensamentos que podem mudar nosso modo de ver o mundo.

Mas será que alguém quer mesmo mudar sua forma de ver o mundo? Ou será que não é melhor deixar tudo como está. Para que pensar, se alguém pensará por nós?


5 - CINISMO


Certa vez, durante uma aula da saudade, um formando declarou em alto e bom som que se sentia feliz em se formar sem ter lido sequer um livro ou feito um trabalho.

No final, para constrangimento de todos, agradeceu a um colega que, em troca de dinheiro, fez todos os trabalhos por ele…

Os sorrisos pálidos não derramaram suas nuvem sobre os fogos lançados durante a formatura e nem desbotaram o sorriso daquele “profissional” em seu álbum de recordações da universidade.

quinta-feira, 23 de janeiro de 2025

SÃO JOSÉ DE RIBAMAR

 

Crédito da imagem: Laura Barros Neres


Nasci em São José de Ribamar e disso tenho muito orgulho. Até recebi de presente o nome do Santo. Presto, então, minha homenagem ao Santo do qual minha mãe e meu pai eram devotos.

MISTÉRIOS DE RIBAMAR 

(José Neres)


A cidade dos encantos 
Só mora dentro de mim.
Nela vivo meus espantos,
Nela projeto meu fim.
Dela tiro meus cantos,
Nela planto meu jardim.

Cada um tem sua versão 
Para um fato especial.
Neste caso optei então 
Pela que achei mais legal.
Mas não conto tudo, não.
Só o que achar principal.

São José de Ribamar -
A cidade balneária -
Lugar bom de se morar,
Tem história lendária 
Que logo vamos contar,
Mesmo de forma precária.

No princípio era lenda,
História para explicar,
De modo simples que atenda
A quem possa duvidar.
E que tão logo isso aprenda,
Possa tudo replicar.

A lenda virou história 
Tão boa de se contar,
De se guardar na memória,
E aos filhos recontar
Sobre a cidade de glória:
São José de Ribamar!

Tudo veio duma promessa
Feita nas ondas do mar,
Quando um navio, na pressa,
De mais cedo chegar 
Desviou da rota à beça,
Ficou prestes a naufragar.

Os tripulantes clamaram,
Choraram em alta voz.
“Valei-nos, Senhor!” - rezaram:
“São José, cuida de nós”!
Olhos aos céus levantaram -
Já não estavam mais sós.

Um milagre aconteceu.
São José ouviu o chamado,
Dos céus logo desceu
E, com o mar amainado,
Em suas mãos protegeu
Aquele povo estimado.

Na praia de São José,
Depois da tempestade, 
Cercados de muita fé,
E repletos de humildade,
Homens salvos da maré 
Prometeram de verdade

Uma capela ali erguer
O mais breve possível,
Para o mundo poder ver
Aquele fato incrível
Que acabou de ocorrer:
Um milagre imprevisível!

Alguém também prometeu
A grande imagem doar
Do santo que os protegeu
Desses perigos do mar…
E foi assim que nasceu
São José de Ribamar!

A bela imagem do Santo
Foi trazida de Lisboa,
Encoberta em azul manto,
Na cabeça, uma coroa;
Olhos repletos de encanto,
Onde a bondade ressoa.

Numa perfeita harmonia
Vinha o Menino Jesus
De mão dada com Maria,
Envoltos em halo de luz.
Os três em plena alegria
Que nos guia e nos conduz.

Três santos numa imagem só 
A nos lembrar que um dia
Nós voltaremos ao pó,
Que um dia toda alegria
Acabará sem um dó,
Deixando só nostalgia.

O Santo foi na capela 
Com cuidado colocado.
A paisagem era bela,
Com mar de frente e de lado:
Parecia bela tela
De artista renomado.

Mas achando tão modesta
A capela construída,
Logo depois de uma festa
Uma ideia foi concebida:
Era ação desonesta,
Mas foi bem recebida.

Logo um plano foi traçado 
Pela gente invejosa:
“O Santo será roubado
De forma bem corajosa.
Se o tempo tiver fechado,
É fácil qual uma tosa”.

Pra povoado distante,
Nosso Santo foi levado
Em igreja elegante
Ele foi logo instalado.
Porém um fato intrigante 
De manhã foi constatado.

Desapareceu o Santo
De dentro daquela igreja.
Procurado em todo canto,
Casa, rua e esquina, ou seja,
Em todo lugar, no entanto,
Ninguém sabe onde ele esteja.

Dia seguinte, a surpresa:
Lá na capela primeira,
Aquela tão sem riqueza,
A imagem verdadeira
Mostrava sua beleza
Estando ali por inteira.

Outras vezes acontecia
De a imagem roubarem
Pela noite, mas, de dia,
Na capela a encontrarem,
Para grande alegria,
E depois comemorarem.

Já tida como pequena,
Por tanto fiel que chegava,
A capela tão serena
Foi logo transformada 
Em igreja tão amena
A São José dedicada.

A notícia se espalhou 
Por toda gente fiel.
Todo mundo trabalhou,
Dia e noite sob o céu.
Diante do mar suou
Pescador e coronel.

Pedra, água, cimento e cal
Pareciam não ter fim
Muito homem e animal
Ali trabalharam, sim,
Também mulher, afinal,
A fé nos comove assim.

A igreja ficou pronta 
Bem de frente para o mar.
Nem mesmo uma afronta
Conseguiu ali chegar,
Nem mesmo ventava contra
São José de Ribamar.

Milagres aconteciam
Ali, em todo lugar.
As pessoas se benziam.
Não paravam de chegar,
Batizam os que nasciam
De José de Ribamar.

Esse nome popular
Desde então se tornou
E passou a nominar
Gente que nasceu ou amou
Naquele belo lugar
Que o bom Deus abençoou.

Uma bela procissão 
Se formou pra agradecer
Milagres com gratidão.
Sempre foi bonito ver
Aquela grande missão:
Fazer da fé um dever.

O povoado virou
Uma cidade de encantos:
Um lugar acolhedor,
Onde mil risos e prantos
Se entregam com fervor
Ao acolhimento dos santos.

Muitos são os devotos
Desse santo padroeiro.
Para ali uns levam fotos,
Outros pedem dinheiro.
Tem os pedidos remotos,
Vem gente até do estrangeiro.

Com velas e braços de cera,
Uns promessas vêm pagar.
Mas há também quem só queira
Por uns minutos rezar
E adorar, a tarde inteira a
São José de Ribamar!

Indo de moto ou a pé,
Marejados de alegria,
Coração cheio de fé,
Devotos em romaria 
Confiam no São José,
No bom Jesus e em Maria.

Seja por mar, seja por terra,
A festa é boa demais.
No céu, bela estrela erra
Tudo lota: Praça e cais.
E, Na hora que a festa encerra,
Só reinam o Amor e a Paz.

Mistérios de São José 
Valem pela eternidade.
E mesmo quem não tem fé 
Sabe ser tudo verdade.
E nosso mundo é como é.
Não vale nossa vontade.

São José de Ribamar 
É um santo muito querido.
Se deste texto gostar,
Você verá seu pedido
Logo se realizar…
Tenha fé e seja atendido…


SJR, 23.01.2025.

segunda-feira, 20 de janeiro de 2025

OUTONO DE CARNE ESTRANHA

 Novos artigos de segunda #17



OUTONO DE CARNE ESTRANHA

José Neres


No início da década de 1980, eu era um dos tantos garotos que moravam no Parque Estrela D’Alva, que, naquela época, não passava de um incipiente loteamento ligado à cidade de Luziânia (GO). 

Todo final de mês, uma das vizinhas - Chamada Maria de Lourdes (não declinarei o sobrenome), sabendo que eu estudava em Luziânia, pedia-me um favor: “Você pode ir até o banco e ver se tem algum depósito para mim?” Sem problema. Eu chegava ao banco, enfrentava uma pequena fila e fazia a pergunta ao caixa. A resposta era, invariavelmente, não.

Um dia, depois de muitos meses dessa angustiada espera, ela me falou o porquê daquele pedido mensal: seu marido havia partido para o garimpo de Serra Pelada e ficou de enviar-lhe dinheiro para o sustento da família.


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A literatura tem o dom de despertar memórias afetivas que estavam jogadas nos desvãos do esquecimento. Digo isso por perceber que hoje, mais de quatro décadas depois, dona Maria de Lourdes, que, provavelmente, já deve ter feito sua viagem final, voltou à minha memória, como se eu ainda fosse aquele garoto na fila do banco 

E como isso aconteceu? Simples, na leitura do livro Outono de carne estranha (Editora Record, 2023, 176 páginas), escrito por Airton Souza, vencedor do Prêmio SESC de Literatura em 2023.

Trata-se de um romance ambientado justamente em Serra Pelada, durante o período em que a esperança de enriquecer no garimpo levou milhares de pessoas àquele local. Muitos não conseguiram enriquecer e nem mesmo tiveram a sorte de voltar para o seio de suas famílias.

Utilizando uma linguagem que mescla a crueza de algumas descrições e metáforas carregadas de poeticidade, Airton Souza constrói sua narrativa a partir de uma relação homoafetiva e suas consequências dentro de uma sociedade explicitamente violenta e eivada de preconceitos.

Ao longo do romance, o leitor entra em contato com cenas que evocam assassinatos, torturas, desmandos e ameaças. Tudo em um tom realístico e repleto de dores, odores e fluidos corporais. O que pode chocar alguns leitores menos afeitos aos estilos adotados pelas narrativas contemporâneas.

Porém, quem se ativer apenas às cenas de sexo e/ou de violência irá perder a oportunidade de entrar em contato com um texto poeticamente bem elaborado e com discussões que podem ir além dos entornos de Serra Pelada e de uma época historicamente datada. 

Embora o romance seja centrado em um ponto específico de um Brasil das décadas finais do século XX, as críticas e denúncias levantadas pelo autor assumem um caráter universal e não apenas regional. Um exemplo disso é a constante, porém quase sempre invisível presença do marechal e de seus bate-paus. Além de representarem a vigilante presença de um Estado que apenas explora, vigia e pune - sem nada oferecer em troca -, eles são também a viva metáfora de um medo que se apresenta diante do trabalhador em forma de armas brancas, armas de fogo, palavras e até de silêncios.

No livro, Zuza e Manel vão muito além de um casal homoafetivo. Eles são a representação icônica de uma parte da sociedade que se vê impotente diante de fatos e de ordens absurdas, mas que devem ser cumpridas. Representam também os passados silenciados pelos poderes e que só podem ser revividos pelas recordações. Contudo, diante das condições adversas, até mesmo as memórias passam a não serem confiáveis. 

No livro, há espaço para quase todos os seres humanos a quem foram negadas condições básicas de vida. Há o padre desencantado com tudo. Há as prostitutas que se entregam em trocas de algumas cédulas. Há a família que ficou distante e que espera o retorno do ente querido. Há quem não possa assumir publicamente a própria sexualidade. Há quem não suporte as pressões do garimpo. Há o explorador e o explorado. Há quem apenas sonhe em um dia bamburrar…

Bamburrar - que significa enriquecer com o ouro encontrado no garimpo - é uma das palavras que norteiam o livro e as reações das personagens. Logo se descobre que bamburrar não é apenas questão de sorte ou de esforço próprio. É preciso também sobreviver às diversas formas de exploração. É preciso inclusive lutar para manter a sanidade mental. 

Quase no final do romance, na página 172 do livro, é possível encontrar uma frase que resume tudo: “Em Serra Pelada, cada homem era apenas a continuação de sua própria desgraça”. Uma síntese perfeita para vidas que se reconhecem como vítimas constantes de tantos abusos. Ali, cada palavra dita pode se transformar em um permanente alvo colado a alguma parte essencial de quem ousou sonhar.

Outono de carne estranha é um livro para ser lido com calma. Antes de iniciar a leitura das primeiras páginas, seria bom trancar todos os preconceitos em um imaginário cofre e partir rumo a um terreno desconhecido, onde dores e odores se impregnarão em sua alma e em sua pele, mandando inclusive seu modo de encarar as realidades alheias.


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Termino o livro e volto a pensar em dona Maria de Lourdes. Será que algum dia, depois que eu fui embora da cidade, apareceu algum dinheiro em sua conta? Será que o marido dela bamburrou e depois voltou para casa? Será que morreu no garimpo? Será que foi perseguido pelo marechal? Será que conheceu alguém parecido com Manel e Zuza? Será? 

Nunca saberei… Mas pelo menos a literatura me permite imaginar e desejar que tudo tenha dado certo. 


segunda-feira, 13 de janeiro de 2025

UM POEMA DE LAURA ROSA

 Novos artigos de segunda #16


VAPOROSA: UM POEMA DE LAURA ROSA

(José Neres)

Reprodução de foto que estava em reposição na VXII Feira do Livro de São Luís 


Uma das características mais recorrentes na produção poética da escritora e professora Maranhense Laura Rosa (1884-1976) é a sua capacidade de, utilizando-se de estruturas e de vocabulário simples, representar a complexidade humana em poemas singelos e que, à primeira vista, parecem superficiais.

É o que ocorre, por exemplo, em Vaporosa, poema composto por apenas cinco estrofes e que foi publicado no jornal A Folha do Povo, em 26 de outubro de 1926, há quase um século, mas que ainda pode ser lido com certo grau de atualidade, conforme reprodução abaixo.


VAPOROSA

(Laura Rosa - Violeta do Campo)

Nuvem branca, pequenina,
Um pedacinho de véu 
Que Deus tirou da neblina
E pendurou lá no céu:

         Dize, dize, nuvem leve,
         Na tua linguagem pura
Como é que no céu se escreve
Esta palavra - Ventura?

Eu quisera ter a dita,
Ó, nuvenzinha discreta,
De vê-la na terra escrita,
Mas… a Ventura completa.

… Vai a nuvem vaporosa,
Que passava e que fugia,
Lá do alto respondeu:

          Quem na terra a escreveria,
          Se a Ventura é como a rosa,
          A Ventura é como eu?

É a palavra que eu conheço 
         (Inda a nuvem diz assim)
Está na terra o começo 
No céu é que está o… fim.

Sem descuidar dos aspectos estruturais e fônicos - enfatizando as rimas alternadas e a métrica em redondilha maior - a autora estabeleceu um imaginário diálogo entre um eu lírico feminino e uma nuvem que vaga pelo céu. O centro da discussão é a possibilidade ou não de haver ventura, em sua totalidade, na terra.

Interpretando-se a palavra “ventura” com o seu sentido mais literal e imediato - o de boa sorte, sucesso ou felicidade - o eu lírico deseja encontrar fora do mundo terreno a resposta para seus anseios. Assim como ocorria nas cantigas trovadorescas de amigo, no poema de Laura Rosa, a mulher, talvez na impossibilidade de manter um diálogos com as pessoas que a cercam, recorre aos elementos da natureza para desabafar e fazer suas confidências.

No entanto, em pleno início de século XX, a autora não mais recorria a elementos que estivessem presos ao rés do chão, pois, aparentemente, suas dúvidas estavam acima das possibilidades de respostas terrenas. A escolha lexical por “véu” e “neblina”, apesar de estar ancorada na necessidade de combinar palavras que rimassem com os demais versos da estrofe, remetem também o leitor a uma atmosfera de mistério e de opacidade. E, diante desse fato, somente as forças divinas poderiam trazer alguma possibilidade de interpretação.

A opção de personalizar a palavra Ventura a partir do uso de iniciais em letras maiúsculas, em uma atitude que remete à estética simbolista, envolve também a necessidade de utilização de fonemas fricativos que evocam a passagem do ar e o deslocamento das nuvens pelo céu. Dessa forma, é possível notar a presença de palavras que trazem fonemas representados pelas letras S, F, V, C e Ç. Esses detalhes aparentemente fortuitos podem contribuir para a interpretação e intelecção do poema, já que não temos ali apenas um amontoado de palavras, mas uma cuidadosa escolha vocabular a partir do anseio da construção de uma imagem poética a ser destrinçada tanto pelos aspectos sonoros, quanto pela estrutura gráfica do texto.

Outro detalhe significativo é o fato de o eu lírico saber como se escreve Ventura na terra, mas indagar como essa mesma palavra é escrita no céu. Ou seja, não é que ela não conheça o que seja Ventura, mas sim o desejo de conhecer a “Ventura completa”, o que demonstra uma espécie de descontentamento para com o que já tem ou conheceu e uma busca de fatores desconhecidos que possam completar uma equação para a qual possivelmente não se tem uma resposta completa.

A resposta da nuvem - que vem quase em forma de charada - demonstra que parte das respostas para se chegar a conhecer a Ventura em totalidade não pode ser encontrada facilmente, já que parte dela está na terra (representando o lado material da vida) e a outra parte só pode ser encontrada no céu (uma simbologia da morte e dos mistérios indevassáveis).

Creio que Laura Rosa seja uma escritora que apresenta margens para diversos estudos. Sua obra ainda não está totalmente conhecida e há diversas facetas que precisam ser exploradas. Vale a pena conhecer o trabalho dessa escritora que passou tanto tempo no limbo de um injusto esquecimento.

domingo, 5 de janeiro de 2025

Análise de livro de Laura Amélia Damous

 Novos artigos de segunda #15



E se Pound lesse o “Arabesco” de Laura Amélia Damous?...

José Neres 


Em um de seus estudos sobre literatura, o crítico e poeta norte-americano Ezra Pound diz que a poesia é “a mais condensada forma de expressão verbal”. A princípio, essa afirmação pode parecer algo simples e até mesmo óbvio. Contudo, quando visto com mais atenção, esse enunciado pode descortinar um universo de possibilidades e remeter a inúmeras leituras que já fizemos e que talvez não tenham ficado claras no ato da leitura, mas que ainda ecoam em nossa memória afetiva, mesmo que não frequentem mais a superfície de nossa consciência.

Pound considera também que a ”grande literatura é simplesmente linguagem carregada de significado até o máximo grau possível”. Claro que qualquer que seja o gênero literário, o texto é sempre composto por palavras e mais palavras. Porém, em muitos casos, a não-palavra também “toca” os olhos, os ouvidos, a alma e coração do leitor. De alguma forma, os textos que ficam eternizados em nossa memória são formados de palavras e de silêncios. As palavras estão impressas nas páginas dos livros e podem ser transformadas em som, quando são recitadas em voz alta. 

Os silêncios, por sua vez, são diferentes e despertam sensações diversas em pessoas diferentes, dependendo do momento em que são “sentidos”. É o não-dito que acaba impregnando de sentido o que foi dito, a partir de uma experiência única e irrepetível, pois em uma outra leitura, em um outro momento, os silêncios já podem nada dizerem ou terem se transformado em sussurros ou gritos. A cada nova leitura não temos mais a inocência que tínhamos antes daquela marcante experiência. Ninguém se banha duas vezes na mesma água do mesmo rio, como deixou claro o sábio Heráclito de Éfeso.

À primeira vista, o livro Arabesco (Lithograf, 2010, 54 páginas) é uma obra de pequenas dimensões físicas e contém apenas 31 (trinta e um) breves poemas, sendo que nenhum deles ocupa mais que uma página. No entanto, essa primeira impressão pode ser totalmente desconstruída quando alguém se propõe a mergulhar nos versos de sua autora - Laura Amélia Damous, uma escritora capaz de, pacientemente, incrustar as palavras exatas e necessárias em versos que primam pela construção do sentido de modo sussurrante e não aos gritos 

Logo no primeiro poema do livro, até mesmo o leitor mais apressado é obrigado a frear seus ímpetos e refletir diante dos seguintes versos do poema intitulado Oásis:


a dor
arma sua tenda
e espreita


Os mais apressados poderiam pensar que se trata de uma tentativa de construir um hai-cai, poema de origem oriental que busca captar algum flash da natureza e provocar algum tipo de reflexão acerca das aparentes simplicidades da vida. Porém, no caso de Oásis, a forma parece ser apenas um detalhe. Há muito mais a ser observado. O fato de a palavra “dor” ocupar a posição superior dos versos, de ser aparente proprietária da “tenda” onde está acomodada deixa evidente que ela se encontra em uma posição privilegiada, que se sente estabelecida e que dali não deseja sair. 

Significativo também é o título do poema. A tenda ocupada pela “dor”, para dali espreitar os entornos seria o “Oásis”? Estaria a autora, de modo silencioso, estabelecendo um diálogo intertextual com o incômodo “ tédio do deserto” imortalizado por Álvares de Azevedo? Pode ser que sim, pode ser que não. Mas, de qualquer modo, o leitor se sente na obrigação de parar naquele oásis e meditar um pouco sobre o tudo e o nada que nos rodeiam.

Mais adiante, no poema Infiel, o eu lírico se identifica como uma 


pastora de nuvens
fui posta a serviço 
com os olhos vazados
pastora de nuvens
fui posta a serviço 
com os pés decepados
pastora de nuvens 


Novamente, a escolha lexical e a posição dos vocábulos no poema trazem suas consequências para a intelecção do cerne do texto. O par significativo “pastora de nuvens” encontra-se estrategicamente ancorado no início, no meio e no fim do poema, o que possibilita uma leitura tanto de cima para baixo, quanto de baixo para cima. Porém, ao se optar por ler na ordem inversa, percebe-se que há uma mudança de percepção. Os “olhos vazados” e os “pés decepados” deixam de ser algo simétrico e transmitem a impressão de que os elementos da natureza - as nuvens - são os únicos que permanecem inalterados (aparentemente), pois, sem os pés, perde-se o ponto de sustentação e, com os olhos vazados, as nuvens ocupam definitivamente o papel de irrelevância da (im)possibilidade de ter os pés presos ao chão. 

Trata-se de uma metáfora interessante que possibilita múltiplas possibilidades de interpretação, o que comprova o trabalho estético de Laura Amélia Damous com as palavras e sua preocupação em ir além das aparências, instigando seus leitores a buscarem novas possibilidades de leitura. Mas, possivelmente, muitos desistiram da leitura ou preferiam ficar apenas na superfície das palavras.

Pound, ao falar do poder transformador da educação, dialogaria com a autora de Arabesco e diria que “a verdadeira educação deve limitar-se, exclusivamente, aos homens que INSISTEM em conhecer, o resto é pastoreio de ovelhas”. 

Porém, Laura Amélia Damous parece não corroborar com esse radicalismo do crítico norte-americano. No lugar da força, das demonstrações de poder e dos esgarçamento das relações, a escritora maranhense prefere as sutilezas da linguagem, conforme pode ser visto no poema a seguir, intitulado Aprendiz:


pedra que se encaixa em pedra
arremessada estática 
reluzentes fria
pedra demarcando limite rastreando caminho
adornando abismo
pedra
a lição da pedra eu quero 


Essas lições da pedra ou pela pedra, que são tão caras à poética de escritores como João Cabral de Melo Neto e Carlos Drummond de Andrade, encontram, nesse livro de Laura Amélia Damous a dimensão da necessária dicotomia em busca de um possível diálogo. Esse olhar que pode ver a pedra a partir de diferentes prismas e que consegue enxergar nela o dualismo necessário à compreensão da dialética da complexidade dos eventos e possibilidades remete às ideias defendidas por pensadores como Edgar Morin e Maria Cândida de Moraes, que preferem apostar na conciliação entre as várias esferas do conhecimento que em um conflito com o objetivo de impor a prevalência de um olhar único e absoluto.

Como pode ser visto, o fato de o livro Arabesco ser uma obra de pequenas dimensões físicas não impede de ele ser um grande livro, capaz de levantar questionamentos. 

Provavelmente, Pound gostaria de ler esse livro, principalmente ao constatar que sua autora , quando escreve, opta por “não usar de maneira alguma palavras que não contribuam para a apresentação”. Tudo nesse livro parece estar em seu devido lugar e, de suas páginas emerge a certeza de que:

o que foi dito
não edita
o sentimento

A ARTE DO MICROCONTO

 Novos artigos de segunda #27 A ARTE DO MICROCONTO José Neres Ao ler um microconto, alguém pode até imaginar: “Ah, isso é fácil! Basta escr...