domingo, 5 de janeiro de 2025

Análise de livro de Laura Amélia Damous

 Novos artigos de segunda #15



E se Pound lesse o “Arabesco” de Laura Amélia Damous?...

José Neres 


Em um de seus estudos sobre literatura, o crítico e poeta norte-americano Ezra Pound diz que a poesia é “a mais condensada forma de expressão verbal”. A princípio, essa afirmação pode parecer algo simples e até mesmo óbvio. Contudo, quando visto com mais atenção, esse enunciado pode descortinar um universo de possibilidades e remeter a inúmeras leituras que já fizemos e que talvez não tenham ficado claras no ato da leitura, mas que ainda ecoam em nossa memória afetiva, mesmo que não frequentem mais a superfície de nossa consciência.

Pound considera também que a ”grande literatura é simplesmente linguagem carregada de significado até o máximo grau possível”. Claro que qualquer que seja o gênero literário, o texto é sempre composto por palavras e mais palavras. Porém, em muitos casos, a não-palavra também “toca” os olhos, os ouvidos, a alma e coração do leitor. De alguma forma, os textos que ficam eternizados em nossa memória são formados de palavras e de silêncios. As palavras estão impressas nas páginas dos livros e podem ser transformadas em som, quando são recitadas em voz alta. 

Os silêncios, por sua vez, são diferentes e despertam sensações diversad em pessoas diferentes, dependendo do momento em que são “sentidos”. É o não-dito que acaba impregnando de sentido o que foi dito, a partir de uma experiência única e irrepetível, pois em uma outra leitura, em um outro momento, os silêncios já podem nada dizerem ou terem se transformado em sussurros ou gritos. A cada nova leitura não temos mais a inocência que tínhamos antes daquela marcante experiência. Ninguém se banha duas vezes na mesma água do mesmo rio, como deixou claro o sábio Heráclito de Éfeso.

À primeira vista, o livro Arabesco (Lithograf, 2010, 54 páginas) é uma obra de pequenas dimensões físicas e contém apenas 31 (trinta e um) breves poemas, sendo que nenhum deles ocupa mais que uma página. No entanto, essa primeira impressão pode ser totalmente desconstruída quando alguém se propõe a mergulhar nos versos de sua autora - Laura Amélia Damous, uma escritora capaz de, pacientemente, incrustar as palavras exatas e necessárias em versos que primam pela construção do sentido de modo sussurrante e não aos gritos 

Logo no primeiro poema do livro, até mesmo o leitor mais apressado é obrigado a frear seus ímpetos e refletir diante dos seguintes versos do poema intitulado Oásis:


a dor
arma sua tenda
e espreita


Os mais apressados poderiam pensar que se trata de uma tentativa de construir um hai-cai, poema de origem oriental que busca captar algum flash da natureza e provocar algum tipo de reflexão acerca das aparentes simplicidades da vida. Porém, no caso de Oásis, a forma parece ser apenas um detalhe. Há muito mais a ser observado. O fato de a palavra “dor” ocupar a posição superior dos versos, de ser aparente proprietária da “tenda” onde está acomodada deixa evidente que ela se encontra em uma posição privilegiada, que se sente estabelecida e que dali não deseja sair. 

Significativo também é o título do poema. A tenda ocupada pela “dor”, para dali espreitar os entornos seria o “Oásis”? Estaria a autora, de modo silencioso, estabelecendo um diálogo intertextual com o incômodo “ tédio do deserto” imortalizado por Álvares de Azevedo? Pode ser que sim, pode ser que não. Mas, de qualquer modo, o leitor se sente na obrigação de parar naquele oásis e meditar um pouco sobre o tudo e o nada que nos rodeiam.

Mais adiante, no poema Infiel, o eu lírico se identifica como uma 


pastora de nuvens
fui posta a serviço 
com os olhos vazados
pastora de nuvens
fui posta a serviço 
com os pés decepados
pastora de nuvens 


Novamente, a escolha lexical e a posição dos vocábulos no poema trazem suas consequências para a intelecção do cerne do texto. O par significativo “pastora de nuvens” encontra-se estrategicamente ancorado no início, no meio e no fim do poema, o que possibilita uma leitura tanto de cima para baixo, quanto de baixo para cima. Porém, ao se optar por ler na ordem inversa, percebe-se que há uma mudança de percepção. Os “olhos vazados” e os “pés decepados” deixam de ser algo simétrico e transmitem a impressão de que os elementos da natureza - as nuvens - são os únicos que permanecem inalterados (aparentemente), pois, sem os pés, perde-se o ponto de sustentação e, com os olhos vazados, as nuvens ocupam definitivamente o papel de irrelevância da (im)possibilidade de ter os pés presos ao chão. 

Trata-se de uma metáfora interessante que possibilita múltiplas possibilidades de interpretação, o que comprova o trabalho estético de Laura Amélia Damous com as palavras e sua preocupação em ir além das aparências, instigando seus leitores a buscarem novas possibilidades de leitura. Mas, possivelmente, muitos desistiram da leitura ou preferiam ficar apenas na superfície das palavras.

Pound, ao falar do poder transformador da educação, dialogaria com a autora de Arabesco e diria que “a verdadeira educação deve limitar-se, exclusivamente, aos homens que INSISTEM em conhecer, o resto é pastoreio de ovelhas”. 

Porém, Laura Amélia Damous parece não corroborar com esse radicalismo do crítico norte-americano. No lugar da força, das demonstrações de poder e dos esgarçamento das relações, a escritora maranhense prefere as sutilezas da linguagem, conforme pode ser visto no poema a seguir, intitulado Aprendiz:


pedra que se encaixa em pedra
arremessada estática 
reluzentes fria
pedra demarcando limite rastreando caminho
adornando abismo
pedra
a lição da pedra eu quero 


Essas lições da pedra ou pela pedra, que são tão caras à poética de escritores como João Cabral de Melo Neto e Carlos Drummond de Andrade, encontram, nesse livro de Laura Amélia Damous a dimensão da necessária dicotomia em busca de um possível diálogo. Esse olhar que pode ver a pedra a partir de diferentes prismas e que consegue enxergar nela o dualismo necessário à compreensão da dialética da complexidade dos eventos e possibilidades remete às ideias defendidas por pensadores como Edgar Morin e Maria Cândida de Moraes, que preferem apostar na conciliação entre as várias esferas do conhecimento que em um conflito com o objetivo de impor a prevalência de um olhar único e absoluto.

Como pode ser visto, o fato de o livro Arabesco ser uma obra de pequenas dimensões físicas não impede de ele ser um grande livro, capaz de levantar questionamentos. 

Provavelmente, Pound gostaria de ler esse livro, principalmente ao constatar que sua autora , quando escreve, opta por “não usar de maneira alguma palavras que não contribuam para a apresentação”. Tudo nesse livro parece estar em seu devido lugar e, de suas páginas emerge a certeza de que:

o que foi dito
não edita
o sentimento

Análise de livro de Laura Amélia Damous

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