Novos artigos de segunda #34
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DIREITO E LITERATURA
Todos os grandes juristas que conheço demonstram um imenso interesse pela leitura em geral e, particularmente, pela literatura. É fato corriqueiro encontrar operadores do Direito – advogados, promotores, juízes, desembargadores... conversando acerca da viabilidade da leitura de alguma obra à luz de alguns preceitos jurídicos. Sem contar que a literatura, serve como fonte de argumentação para diversas sustentações orais dos operadores do Direito.
É também
bastante comum encontrar nas faculdades de Direito a formação de grupos de
estudos dedicados a dissecar o inter-relacionamento entre teatro, poesia e prosa
de ficção com as questões teóricas levantadas por professores e/ou demais
convidados. Embora algumas pessoas possam considerar essa prática meio
artificial, trata-se de um excelente recurso para aproximar os futuros
profissionais de situações que, embora sejam fictícias, encontram alguns reflexos
nas questões cotidianas.
A seguir,
comentamos uma pequena lista de livros que mantêm algum tipo de relação
explícita entre esses dois importantes campos do conhecimento humano. Claro que
é uma lista pessoal, cheia de lacunas, e que pode ser ampliada por qualquer outra
pessoa que se interesse pela temática.
Alguns livros
são constantemente revisitados quando o assunto é o entrecruzamento entre a Literatura
e o Direito. Um deles é “O Processo”, uma das obras-primas escritas pelo
escritor tcheco Franz Kafka (1883-1924). Desde as primeiras linhas do romance,
quando o narrador anuncia que “Alguém deve ter caluniado Josef K., porque foi
preso uma manhã, sem que ele houvesse feito alguma coisa de mal”, o leitor já
começa a mergulhar em um emaranhando de questões que podem ser discutidas quanto
à legalidade das ações e quanto aos métodos empregados pelos perseguidores. É uma
obra indispensável a quem já enveredou ou pretende enveredar pelos terrenos do Direito
e que considera a literatura como parte de sua formação.
Outro livro
que abre caminho para muitas discussões é “Crime e Castigo”, de Fiodor
Dostoiévski (1821-1881). Logo ao entrar em contato com a figura de Raskólnikov,
o jovem que “não estava acostumado com multidões e [que] nestes últimos tempos,
sobretudo, fugia do convívio de seus semelhantes”, o leitor mais atento percebe
que aquela personalidade arredia dará margens para um mergulho na essência humana,
com implicações jurídicas de seus atos.
Uma obra
que oferece diversas possibilidades de leitura e que destina uma atenção
especial às questões relacionadas com o Direito é “A Confissão de Lúcio”,
romance de Mário de Sá-Carneiro (1890-1916). O interesse do narrador desde o início
do livro é convencer o público de que ele – Lúcio – não foi o responsável pelo
crime de que foi vítima seu melhor amigo – Ricardo de Loureiro. O fato de Lúcio
haver estudado Direito na Faculdade de Paris e de conhecer os meandros do
Direito Processual da época serve como elemento complicador para a narrativa. Esse
livro oferece também excelente oportunidade de estudo sobre a psicologia
humana.
Ainda
relacionado com aspectos legais e psicológicos, temos o romance “Dom
Casmurro”, um dos livros mais conhecidos de Machado de Assis (1839-1908). Ainda
hoje, o livro desperta o interesse pelas questões relacionadas às relações parentais.
Há inúmeros casos em que os professores utilizaram esse livro como base para a
criação de júris simulados, principalmente com ênfase na centenária questão
envolvendo a dúvida sobre o adultério (ou não) de Capitu. Porém além disso, o
livro também pode dar margens para outras discussões envolvendo o Direito de Família.
As relações
familiares podem também ser bastante exploradas no “Livro de uma sogra”,
de Aluísio Azevedo (1859-1913). Nesse romance, o autor apresenta aos leitores um
(para a época) inusitado contrato de namoro envolvendo um jovem apaixonado, sua
amada e a futura sogra. O que hoje pode ser visto com algo corriqueiro deve ter
despertado al longo do tempo muitas discussões acerca da legalidade ou não de
tais contratos.
Muitas são
as obras que poderiam trazer à tona as discussões sobre os Direitos Humanos,
porém, neste breve artigo, vou ater-me a apenas dois trabalhos artísticos: o
poema “Hombre preso que mira a su hijo”, de escritor uruguaio Mario
Benedetti (1920-2009); e o romance “Os que bebem como os cães”, do
romancista piauiense Assis Brasil (1929-2021). Em ambos os casos, as personagens
são vítimas de torturas por parte do Estado e, privadas de liberdade por conta
de acusações hipotéticas fundamentadas principalmente em um olhar totalitário
que é denunciado em cada linha dos textos. As imagens exploradas pelos dois escritores
são chocantes e rementem a diversos questionamentos sobre os direitos primordiais
que tantas vezes são negados às pessoas.
“Incidente
em Antares”, de Erico Veríssimo (1905-1975), é outro livro que traz muitas
questões jurídicas que podem ser discutidas, desde as relações trabalhistas –
importante notar que boa parte da narrativa se passa durante um movimento
grevista ocorrido naquela cidade fictícia – passando pelas muitas lições de Direito
Eleitoral e Direito Administrativo aventadas durante o famoso embate verbal
entre o advogado Cícero Branco e o meritíssimo juiz da cidade. Ao logo da história
é também levantada a dúvida sobre se os mortos teriam ou não que obedecer aos
ditames legais preconizados pelos códigos judiciais que foram escritos para
tratarem exclusivamente de pessoas vivas. O livro trata ainda de Direitos
Humanos, relações familiares, corrupção, fraudes e de tantos ostros assuntos
que podem ser estudados nos cursos de Direito.
Um dos
casos judiciais mais controversos do final do século XIX, o crime cometido pelo
desembargador Pontes Visgueiro contra a menina Maria da Conceição, conhecida
como Mariquinhas já foi explorado em diversos trabalhos de cunho jurídico, mas
também serviu de base para a elaboração do romance “A Tara e a Toga”,
uma livre adaptação literária escrita pelo romancista maranhense Waldemiro
Viana (1946-2020). A partir da leitura desse livro, é possível explorar diversas
situações jurídicas envolvendo as personagens e os acontecimentos que servirão
como base para a elaboração da narrativa.
A relação
da literatura com os diretos de pessoas menores de idade pode ser discutida a
partir da leitura de livros como “Capitães da Areia” (Jorge Amado, 1912-2001);
“Aracelli, meu amor” e “Pixote: A infância dos mortos” (José
Louzeiro, 1932-2017), “Querô” (Plínio Marcos (1935-1999), “O
Estudante” (Adelaide Carraro, 1926-1992), “O alucinado som de tuba” (Frei
Betto, 1944), “A rebelião dos órfão” (Assis Brasil, 1929-2021) e “Um
destino provisório” (Lucy Teixeira, 1922-2007). Sendo que o último livro
citado foi escrito a partir das observações da autora, que era graduada em
Direito, com relação a uma lei
específica a ser aplicada em caso de ato delituoso cometido por menores em
situação de conflito com a lei. Dessas observações, nasceu esse belo e contundente
romance.
Esses são
apenas alguns exemplos de obras que fazem o entrecruzamento da Literatura com o
Direito. Mutas outra poderiam ser citadas, como é o caso de “O sol é para
todos” (Harper Lee, 1916-2016), “A firma” (John Grisham, 1955), “1984”
(George Orwell (1903-1950), “A sangue frio” (Truman Capote, 1924-1984), “O
casamento” (Nelson Rodrigues, 1912-1980)... Porém a lista jamais se esgotará. Ainda
bem! Já que são duas áreas que estão sempre se renovando e trazendo novos olhares
e novas produções.
O importante
é continuar lendo... e estudando.
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#DireitoeLiteratura #Direito #Literatura
Texto muito rico, professor. Recentemente, numa turma de Direito, ministrei aula sobre direitos humanos e cidadania. Tendo discutido o papel das violências sociais como um dos fatores associados à gênese do comportamento criminoso, arrematei a aula lendo o texto Provocações, do Fernando Verissimo. Caiu como uma luva.
ResponderExcluirObrigado pela leitura, professor Isaac.
ExcluirQuantos livros bons. Prof Neres sempre indicando excelentes livros
ResponderExcluirMuito obrigado pela leitura.
ExcluirA indicação de obras pelo professor faz parte do seu direito de cátedra, direito que está garantido pela CF/88, bem como a Lei de Diretrizes e Base da Educação Nzacional - Lei 9.394/96. Bom que ainda existem professores comprometidos com a educação de seus alunos. São professores com nível de consciência elevado. Muito boa essa matéria. Gosto disso!
ResponderExcluirObrigado!
ExcluirFoi maravilhoso lembrar de tantos livros. Os investigativos eram bem interessantes. Obrigada pela lembrança.
ResponderExcluirAgradeço pela leitura, Ana. Abraços!
ExcluirExcelente texto, professor José Neres! Através da sua exposição, observamos que a literatura, como bem indicou Roland Barthes, congrega diferentes saberes.
ResponderExcluirVerdade. A Literatura é acolhedora e repleta de nuances.
ExcluirUm excelente artigo! Parabéns, prof. José Neres.
ResponderExcluirObrigado pela gentileza!
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