domingo, 8 de junho de 2025

MAIS DE CEM LIVROS

 Novos artigos de segunda #35

FONTE DA IMAGEM: arquivo do autor 


MAIS DE CEM LIVROS MARANHENSES

José Neres

 

Pretendia hoje escrever sobre a relação entre a Literatura e a Psicologia, mas esse tema ficará para outra ocasião. Decidi então entrar no sempre perigoso terreno das listas.
Qual o problema? Nenhum. Toda lista é algo pessoal e comprova que tudo o que sabemos é um quase-nada diante de um todo-desconhecido que se esconde do nosso olhar. Quais os critérios? Praticamente apenas dois: 1) enumero alguns  livros que li e que – gostando ou não – resolvi citá-los aqui; 2) são romances e novelas escritos por autores maranhenses ou que adotaram o Maranhão como novo lar, nem que seja apenas por alguns momentos.
Desta vez, não fazei comentários ou explicações, apenas enumerarei o título do romance/novela e seu autor ou autora. Haverá injustiças? Omissões? Omissões, sim; injustiças, não. Não tenho, nunca tive e jamais terei oportunidade de ler todos os livros produzido no Maranhão ou por prosadores maranhenses. Além disso, estou escrevendo de memória. E ela sempre falha.
Abaixo está minha lista. A numeração não está relacionada nem com a qualidade das obras nem por um escalonamento de gosto, mas apenas uma questão de ter que colocar cada livro em uma sequência.

Vamos à lista:

  • 1.      O Mulato (Aluísio Azevedo)
  • 2.      Casa de Pensão (Aluísio Azevedo)
  • 3.      O Cortiço (Aluísio Azevedo)
  • 4.      O Livro de uma sogra (Aluísio Azevedo)
  • 5.      Por onde Deus não andou  (Godofredo Viana)
  • 6.      O Dono do Mar (José Sarney)
  • 7.      Saraminda (José Sarney)
  • 8.      A casca da caneleira (Vários autores)
  • 9.      O outro caminho (João Mohana)
  • 10. Maria da Tempestade (João Mohana)
  • 11. Apetrechos do Amor (Ribamar Galiza)
  • 12. O Monstro Sousa (Bruno Azevêdo)
  • 13. O gosto amargo da cereja (Joe Rosa)
  • 14. Sol para quartos mofados (Joe Rosa)
  • 15. Cais da Sagração (Josué Montello)
  • 16. Os tambores de São Luís (Josué Montello)
  • 17. Noite sobre Alcântara (Josué Montello)
  • 18. Uma varanda sobre o silêncio (Josué Montello)
  • 19. Uma sombra na parede (Josué Montello)
  • 20. Canaã (Graça Aranha)
  • 21. A Balaiada (viriato Corrêa)
  • 22. Cazuza (Viriato Corrêa)
  • 23. Vila Tamandará  (Dorinha Marinho)
  • 24. As diferentes faces do amor (Dorinha Marinho)
  • 25. Pixote (José Louzeiro)
  • 26. Aracelli, Meu Amor (José Louzeiro)
  • 27. Lúcio Flávio – O passageiro da Agonia (José Louzeiro)
  • 28. O ano da Revolta dos desvalidos (Ronaldo Costa Fernandes)
  • 29. A Balaiada (Ronaldo Costa Fernandes)
  • 30. Um homem é muito pouco (Ronaldo Costa Fernandes)
  • 31. João Rama (Ronaldo Costa Fernandes)
  • 32. Cinza da Solidão (Marco Polo Haickel)
  • 33. Um destino provisório (Lucy Teixeira)
  • 34. Rol das faces (Eliane Morais)
  • 35. Comensais (Eliane Morais)
  • 36. Virna (Inês Maciel)
  • 37. Laura (Heloísa Sousa)
  • 38. A Parede (Arlete Nogueira da Cruz)
  • 39. Compasso Binário (Arlete Nogueira da Cruz)
  • 40. Ana Jansen (Rita Ribeiro)
  • 41. A Tara e a Toga (Waldemiro Viana)
  • 42. Graúna em roça de arroz (Waldemiro Viana)
  • 43. Mistério da casa de Cultura (Samira Diorama da Fonseca)
  • 44. Crystal – uma história de sincretismo e encantaria (Samira Diorama da Fonseca)
  • 45. A Capital Federal (Coelho Neto)
  • 46. Rei Negro (Coelho Neto)
  • 47. Turbilhão (Coelho Neto)
  • 48. Simplesmente Alice (Nathalia Batista)
  • 49. O Andrógino (Alberico Carneiro Filho)
  • 50. Vencidos e degenerados (Nascimento Moraes)
  • 51. La Lune  (Lorena Silva)
  • 52. O Bequimão (Clodoaldo Freitas)
  • 53. O arquivista acidental (Antonio Guimarães de Oliveira)
  • 54. Úrsula (Maria Firmina dos Reis)
  • 55. Lili Ffrit e o mundo dos humanos (Jaqueline Morais)
  • 56. Lili Ffrit e o guerreiro da noite (Jaqueline Morais)
  • 57. A casa do sentido vermelho (Jorgeana Braga)
  • 58. A Setembrada (Dunshee de Abranches)
  • 59. Balaiada – Rastros de amor e ódio (Bento Moreira Lima)
  • 60. Razões do Acaso (Bento Moreira Lima)
  • 61. Trêfego (Chuelay Nascimento)
  • 62. O Vale da Curacanga (José Jorge leite Soares)
  • 63. Ecos de sinos sobre a cidade (Lourival Serejo)
  • 64. Bequimão (Bernardo Coelho de Almeida)
  • 65. O Tradutor  (Sanatiel Pereira)
  • 66. Os anjos não têm asas (Sanatiel Pereira)
  • 67. O Vale das Trutas (Sanatiel Pereira)
  • 68. Belo Maldito (Vinícius Bogéa)
  • 69. Solidão de Aço (Vinícius Bogéa)
  • 70. A Faca e o Rio (Odylo Costa, filho)
  • 71. A Cobra Divina (Ariel Vieira de Moraes)
  • 72. O Anjo Modernista (Ariel Vieira de Moraes)
  • 73. Canções de agosto (Márcio Coutinho)
  • 74. Rita no Pomar (Rinaldo de Fernandes)
  • 75. Eu não quis te ferir (Rinaldo de Fernandes)
  • 76. Romeu na estrada (Rinaldo de Fernandes)
  • 77. Entre pétalas e espinho (Jeiane Costa)
  • 78. Marcas indeléveis (Ahtange Ferreira)
  • 79. Psicopatia (Ahtange Ferreira)
  • 80. O ofício de matar suicidas (José Ewerton Neto)
  • 81. A ânsia do prazer (José Ewerton Neto)
  • 82. O menino que via o além (José Ewerton Neto)
  • 83. O infinito em minhas mãos (José Ewerton Neto)
  • 84. Teias do tempo (Conceição Aboud)
  • 85. Um estudo de temperamento (Celso Magalhães)
  • 86. O defunto imaginário (Adonai Moreira)
  • 87. Sêpsis (Geraldo Iensen)
  • 88. O Labirinto dos Sonhos (Fernando Reis)
  • 89. A Comunidade Rubra (J. M. Cunha Santos)
  • 90. A segunda chance de Eurides (Herberth de Jesus Santos)
  • 91. Maria Arcângela (Erasmo Dias)
  • 92. A Ilha (Ubiratan Teixeira)
  • 93. O Banquete (Ubiratan Teixeira)
  • 94. As sombras da batina (José Garcia)
  • 95. Cafés Amargos (Sabryna Mendes)
  • 96. As figuras em cera (Fernando Moreira)
  • 97. Fissura no tempo (Cristiane Mesquita Gomes)
  • 98. Espelho de três faces (Virgínia Rayol Braga)
  • 99. Pétalas de Sangue  (Laura Barros Neres)
  • 100  Desaparecido (Déa Alhadeff)
  •  101 Os Segredos de uma jovem espiã (Déa Alhadeff)
  • 102  O desprincesamento (juliana Duarte)
  • 103 Mortes em Cadeia (Pedro Neto)
  • 104 O 18⁰ andar ( Marcos Fábio Belo Matos)

Pronto, queridos e queridas, temos acima uma lista com mais de cem livros em prosa (romances e novelas) para você se deliciar com a riqueza de nossa literatura maranhense. Claro que há mais de uma, duas ou três centenas de obras que ficaram fora da relação. Mas a culpa é minha, que queria ter lido mais e não consegui.

Até a próxima semana!


domingo, 1 de junho de 2025

ARTIGO: DIREITO E LITERATURA

 Novos artigos de segunda #34

Imagem criada com auxílio de Inteligência Artificial 



DIREITO E LITERATURA

 José Neres

 

Todos os grandes juristas que conheço demonstram um imenso interesse pela leitura em geral e, particularmente, pela literatura. É fato corriqueiro encontrar operadores do Direito – advogados, promotores, juízes, desembargadores... conversando acerca da viabilidade da leitura de alguma obra à luz de alguns preceitos jurídicos. Sem contar que a literatura, serve como fonte de argumentação para diversas sustentações orais dos operadores do Direito.

É também bastante comum encontrar nas faculdades de Direito a formação de grupos de estudos dedicados a dissecar o inter-relacionamento entre teatro, poesia e prosa de ficção com as questões teóricas levantadas por professores e/ou demais convidados. Embora algumas pessoas possam considerar essa prática meio artificial, trata-se de um excelente recurso para aproximar os futuros profissionais de situações que, embora sejam fictícias, encontram alguns reflexos nas questões cotidianas.

A seguir, comentamos uma pequena lista de livros que mantêm algum tipo de relação explícita entre esses dois importantes campos do conhecimento humano. Claro que é uma lista pessoal, cheia de lacunas, e que pode ser ampliada por qualquer outra pessoa que se interesse pela temática.

Alguns livros são constantemente revisitados quando o assunto é o entrecruzamento entre a Literatura e o Direito. Um deles é “O Processo”, uma das obras-primas escritas pelo escritor tcheco Franz Kafka (1883-1924). Desde as primeiras linhas do romance, quando o narrador anuncia que “Alguém deve ter caluniado Josef K., porque foi preso uma manhã, sem que ele houvesse feito alguma coisa de mal”, o leitor já começa a mergulhar em um emaranhando de questões que podem ser discutidas quanto à legalidade das ações e quanto aos métodos empregados pelos perseguidores. É uma obra indispensável a quem já enveredou ou pretende enveredar pelos terrenos do Direito e que considera a literatura como parte de sua formação.

Outro livro que abre caminho para muitas discussões é “Crime e Castigo”, de Fiodor Dostoiévski (1821-1881). Logo ao entrar em contato com a figura de Raskólnikov, o jovem que “não estava acostumado com multidões e [que] nestes últimos tempos, sobretudo, fugia do convívio de seus semelhantes”, o leitor mais atento percebe que aquela personalidade arredia dará margens para um mergulho na essência humana, com implicações jurídicas de seus atos.

Uma obra que oferece diversas possibilidades de leitura e que destina uma atenção especial às questões relacionadas com o Direito é “A Confissão de Lúcio”, romance de Mário de Sá-Carneiro (1890-1916). O interesse do narrador desde o início do livro é convencer o público de que ele – Lúcio – não foi o responsável pelo crime de que foi vítima seu melhor amigo – Ricardo de Loureiro. O fato de Lúcio haver estudado Direito na Faculdade de Paris e de conhecer os meandros do Direito Processual da época serve como elemento complicador para a narrativa. Esse livro oferece também excelente oportunidade de estudo sobre a psicologia humana.

Ainda relacionado com aspectos legais e psicológicos, temos o romance “Dom Casmurro”, um dos livros mais conhecidos de Machado de Assis (1839-1908). Ainda hoje, o livro desperta o interesse pelas questões relacionadas às relações parentais. Há inúmeros casos em que os professores utilizaram esse livro como base para a criação de júris simulados, principalmente com ênfase na centenária questão envolvendo a dúvida sobre o adultério (ou não) de Capitu. Porém além disso, o livro também pode dar margens para outras discussões envolvendo o Direito de Família.

As relações familiares podem também ser bastante exploradas no “Livro de uma sogra”, de Aluísio Azevedo (1859-1913). Nesse romance, o autor apresenta aos leitores um (para a época) inusitado contrato de namoro envolvendo um jovem apaixonado, sua amada e a futura sogra. O que hoje pode ser visto com algo corriqueiro deve ter despertado al longo do tempo muitas discussões acerca da legalidade ou não de tais contratos.

Muitas são as obras que poderiam trazer à tona as discussões sobre os Direitos Humanos, porém, neste breve artigo, vou ater-me a apenas dois trabalhos artísticos: o poema “Hombre preso que mira a su hijo”, de escritor uruguaio Mario Benedetti (1920-2009); e o romance “Os que bebem como os cães”, do romancista piauiense Assis Brasil (1929-2021). Em ambos os casos, as personagens são vítimas de torturas por parte do Estado e, privadas de liberdade por conta de acusações hipotéticas fundamentadas principalmente em um olhar totalitário que é denunciado em cada linha dos textos. As imagens exploradas pelos dois escritores são chocantes e rementem a diversos questionamentos sobre os direitos primordiais que tantas vezes são negados às pessoas.

Incidente em Antares”, de Erico Veríssimo (1905-1975), é outro livro que traz muitas questões jurídicas que podem ser discutidas, desde as relações trabalhistas – importante notar que boa parte da narrativa se passa durante um movimento grevista ocorrido naquela cidade fictícia – passando pelas muitas lições de Direito Eleitoral e Direito Administrativo aventadas durante o famoso embate verbal entre o advogado Cícero Branco e o meritíssimo juiz da cidade. Ao logo da história é também levantada a dúvida sobre se os mortos teriam ou não que obedecer aos ditames legais preconizados pelos códigos judiciais que foram escritos para tratarem exclusivamente de pessoas vivas. O livro trata ainda de Direitos Humanos, relações familiares, corrupção, fraudes e de tantos ostros assuntos que podem ser estudados nos cursos de Direito.

Um dos casos judiciais mais controversos do final do século XIX, o crime cometido pelo desembargador Pontes Visgueiro contra a menina Maria da Conceição, conhecida como Mariquinhas já foi explorado em diversos trabalhos de cunho jurídico, mas também serviu de base para a elaboração do romance “A Tara e a Toga”, uma livre adaptação literária escrita pelo romancista maranhense Waldemiro Viana (1946-2020). A partir da leitura desse livro, é possível explorar diversas situações jurídicas envolvendo as personagens e os acontecimentos que servirão como base para a elaboração da narrativa.

A relação da literatura com os diretos de pessoas menores de idade pode ser discutida a partir da leitura de livros como “Capitães da Areia” (Jorge Amado, 1912-2001); “Aracelli, meu amor” e “Pixote: A infância dos mortos” (José Louzeiro, 1932-2017), “Querô” (Plínio Marcos (1935-1999), “O Estudante” (Adelaide Carraro, 1926-1992), “O alucinado som de tuba” (Frei Betto, 1944), “A rebelião dos órfão” (Assis Brasil, 1929-2021) e “Um destino provisório” (Lucy Teixeira, 1922-2007). Sendo que o último livro citado foi escrito a partir das observações da autora, que era graduada em Direito,  com relação a uma lei específica a ser aplicada em caso de ato delituoso cometido por menores em situação de conflito com a lei. Dessas observações, nasceu esse belo e contundente romance.

Esses são apenas alguns exemplos de obras que fazem o entrecruzamento da Literatura com o Direito. Mutas outra poderiam ser citadas, como é o caso de “O sol é para todos” (Harper Lee, 1916-2016), “A firma” (John Grisham, 1955), “1984” (George Orwell (1903-1950), “A sangue frio” (Truman Capote, 1924-1984), “O casamento” (Nelson Rodrigues, 1912-1980)... Porém a lista jamais se esgotará. Ainda bem! Já que são duas áreas que estão sempre se renovando e trazendo novos olhares e novas produções.

O importante é continuar lendo... e estudando.

Imagem criada com auxílio de Inteligência Artificial 


#DireitoeLiteratura   #Direito    #Literatura       


segunda-feira, 26 de maio de 2025

ARTIGO: MÚSICA E LITERATURA

 Novos artigos de segunda #33


MÚSICA E LITERATURA

José Neres

 


É bastante antiga a relação intrínseca entre a música e a literatura. O Filósofo grego Aristóteles, em sua Poética, já destacava a importância da música na composição das peças teatrais e da melopeia para a fruição das obras literárias.

Na Idade Média, a relação do texto literário com a musicalidade das palavras se torna ainda mais intensa, ao ponto de a poesia medieval, durante determinado espaço de tempo, receber a nomenclatura de cantiga (de amor, amigo, escárnio e maldizer), não apenas por ser acompanhada por instrumentos musicais, mas também pelo ritmo de leitura imposto pelos versos dos poemas.

Atualmente, em uma época em que praticamente todo mundo circula conectado a fones de ouvido, a música tem se tornado cada vez mais uma companhia constante de pessoas de diferentes faixas etárias e sociais. Já a literatura às vezes é tida como luxo e outras vezes como lixo. É cada dia mais raro encontrar pessoas com livros nas mãos. Claro que as novas tecnologias permitem que toda uma biblioteca caiba em um pequeno aparelho de telefonia móvel, mas nem sempre esse é o objetivo desses usuários.

Mesmo assim, a música nunca deixou de ser uma forma de fazer uma intermediação entre o leitor e as obras literária, embora isso nem sempre seja perceptível à primeira vista, com é o caso de “Uma barata chamada Kafka”, gravada em 1989 pelo grupo musical Inimigos do Rei. Quem ouve distraidamente a canção, sem atentar para o título, talvez não perceba o trabalho artístico com a linguagem no trecho abaixo, que remete ao livro A Metamorfose, de Franz Kafka:

Ela disse sim! Vem cá ficar comigo
Sim! Gosta de tudo que eu gosto
Sim! Vem cá ficar comigo
Sim! Vem, Kakfa.

As obras de Jorge Amado, além de serem diversas vezes adaptadas para a televisão e para o cinema, também ganharam algumas versões musicais, como é o caso de “Jubiabá”, música interpretada por Gerônimo Santana, inspirada no romance homônimo; “Tieta”, famosa composição de Luiz Caldas; “Luz de Tieta”, escrita e interpretada por Caetano Veloso; “Alegre menina”, composição de Dorival Caymmi e Jorge Amado, que tem como base o livro “Gabriela Cravo e Canela”. Esse romance também serviu como base para Dorival Caymmi escrever o clássico “Modinha para Gabriela” e eternizar na memória das pessoas os seguintes versos:

Eu nasci assim eu cresci assim
E sou mesmo assim
Vou ser sempre assim Gabriela
Sempre Gabriela

Os admiradores da obra infanto-juvenil de Monteiro Lobato provavelmente se lembram da abertura do programa televisivo que trazia a voz de Gilberto Gil cantando essa emblemática letra inspirada em “O Sítio do Pica-Pau Amarelo”. Quando se ouve alguém falar sobre essa obra, geralmente vem à memória os seguintes versos:

 

Marmelada de banana
Bananada de goiaba
Goiabada de marmelo
Sítio do Pica-Pau Amarelo
Sítio do Pica-Pau Amarelo
Boneca de pano é gente
Sabugo de milho é gente
O sol nascente é tão belo
Sítio do Pica-Pau Amarelo
Sítio do Pica-Pau Amarelo

 

Raimundo Fagner sempre valorizou a relação entre música e literatura, como é o caso de “Motivo”, poema de Cecília Meireles por ele musicado; “Fanatismo”, inspirado em poema de Florbela Espanca; e “Traduzir-se”, poema de Ferreira Gullar que também ficou imortalizado por esse cantor cearense. Sendo que o autor do Poema Sujo – que revisitou as “Bachianas Brasileiras nº 2”, de Heitor Villa-Lobos - foi revisitado em outras composições musicais, como “Bela, Bela”, interpretada por Milton Nascimento, “Trenzinho do Caipira”, que conta com diversos intérpretes, e “Vambora”, cantada por Adriana Calcanhotto, onde é possível encontrar alusões a livros de  Ferreira Gullar e de Manuel Bandeira.

O grupo musical Quinteto Violado gravou “Palavra Acesa”, uma adapt(ação musical de um poema de José Chagas 1924-2014).  Um dos grandes sucessos de Chico Buarque de Hollanda é “O enterro de um lavrador”, trecho do poema “Morte e Vida Severina”, de João Cabral de Melo Neto (1920-1999). O poema “Go back”, de Torquato Neto  foi gravado pelo grupo Titãs.

Trechos da Bíblia e um soneto de Luís Vaz de Camões são cantados pelo grupo Legião Urbana em “Monte Castelo”, uma das composições mais representativas desse famoso grupo musical. Admirador da literatura, Raul Seixas foi buscar no livro “As Minas do Rei Salomão” de Henry Rider Haggard (1856-1925) a inspiração para música homônima ao romance do escritor inglês, aproveitando para citar o Dom Quixote na letra da composição. Os ensinamentos de Maábarata no livro “Bhagavad Gita” inspiraram Raul Seixas e Paulo Coelho na composição de “Gita”, cujos versos abaixo são constantemente relembrados

Eu sou a vela que acende
Eu sou a luz que se apaga
Eu sou a beira do abismo
Eu sou o tudo e o nada

Admirável gado novo” (de Zé Ramalho) e “Admirável chip novo” (de Pitt), apesar de trazerem concepções estéticas e abordagens temáticas distintas, são inspiradas no livro “Admirável mundo novo”, do escritor inglês Aldous Huxley (1894-1963). O romance de Eça de Queiroz (1845-1900)  “O primo Basílio” serviu de inspiração para “Amor, I love you”, grandioso sucesso na voz de Marisa Monte.

Às vezes, a versão musical de determinado texto se torna tão conhecida que muitas pessoas confundem o intérprete com autor original da obra. É o que ocorreu com “E agora José” – poema de Carlos Drummond de Andrade (1902-1987)- que fez muito sucesso na voz de Paulo Diniz, responsável também pala versão musicalizada do poema “Vou-me embora pra Pasárgada”, de Manuel Bandeira (1886-1968).

Esse é um tema que não se esgota em poucas páginas. Cada pessoa, provavelmente, terá em sua mente uma relação de outras peças musicais inspiradas na literatura. O importante é lembrar que a música pode ser também uma forma de aproximar os leitores das obras literárias ou de outras formas de expressão artística.

 

 

 

 


sexta-feira, 23 de maio de 2025

CONTO: FORÇA

 

Imagem criada com auxílio de Inteligência Artificial 


FORÇA 

José Neres 


Desejo-lhe muita força neste momento tão difícil de sua vida.


Aquela mensagem deixada em uma rede social por uma amiga a quem não via há mais de duas décadas fez com que ela estremecesse da cabeça aos pés.

Teve que pegar o ônibus às pressas para não perder aquele momento.

De todas as palavras da língua portuguesa, aquela era a que mais lhe causava medo - força.

Lembrou-de quando a tia lhe narrara a força que sua mãe havia feito para que ela nascesse em um parto complicadíssimo. O resultado foi nunca ter conhecido a própria mãe e passar a vida sendo considerada culpada pela família pela morte de Dona Inês.

Lembrou-se também da força do braço erguido daquele homem a esbofetear sua cara quando lhe negou um beijo depois da festa da igreja. Da força para tentar se desvencilhar dele quando, certa madrugada, ele invadiu o quarto. Da força daquele pênis ereto a invadir suas carnes. Da força que fazia ao vomitar escondida sem poder contar que estava grávida. Da força que fez para suportar a dor de ter aqueles objetos dentro de si cortando aquele inocente que não poderia nascer. Da força da correnteza que, durante uma tempestade, levou para um bueiro os restos de um filho que jamais conheceu. Da força que fazia naquele trabalho pesado que executava seis vezes por semana para se sustentar seus precisar ouvir humilhações 

Não. Definitivamente não. Estar ali no enterro daquela tia que a criou como se fosse uma estranha, que tantas vezes a obrigou a dormir com fome, que fingiu não perceber os repetidos abusos sexuais que ela sofrera, que a obrigara a tirar a criança para não incriminar o tio bêbado e tarados não era um dos momentos difíceis de sua vida.

Agora, ali, diante do caixão aberto, era preciso fazer força para não transformar aquele singelo sorriso de canto de boca em uma alegre gargalhada. 

Força!...

domingo, 18 de maio de 2025

ARTIGO: LITERATURA NAS TELAS

 Novos artigos de segunda #32

Imagem criada com auxílio de Inteligência Artificial 


LITERATURA NAS TELAS

José Neres 


É algo praticamente inevitável. Sempre que alguém descobre que um filme ou série é adaptação de uma obra literária surgem alguns comentários como, por exemplo: “Ah, o livro é melhor”, “O filme não tem nada a ver com o livro”, “Estragaram o livro”, “Nem vou ler o livro para não passar raiva”...

Há também aquelas pessoas que acreditam que, ao assistirem ao filme, já conhecem a fundo o livro no qual a produção cinematográfica foi inspirada. Nascem, assim, diálogos como: “- Já leu o livro? - Não li, mas vi o filme” ou “- Vamos fazer nossa prova com base no livro Tal, alguma pergunta? - Professor, posso ver somente o filme? O livro é muito grande!”.

Tais pessoas geralmente esquecem (ou ignoram) alguns detalhes significativos:

1 - Um filme, novela ou série adaptado para a linguagem cinematográfica ou televisiva é sempre a apresentação de uma leitura feita por alguém. Jamais é a própria obra literária. São linguagens e experiências diferentes que trazem resultados e expectativas também diferentes. Um caso interessante é a adaptação para o cinema do romance “Ardiente Paciencia”, que ficou bastante conhecido como “O carteiro e o poeta”, do romancista chileno Antonio Skármeta (1940-2024). O filme é de uma singeleza encantadora, mas o livro traz uma mescla de poeticidade e crueza na linguagem e nas descrições, o que pode chocar muitos leitores que apenas assistiram ao filme, quando entram em contato com o texto integral do romance.

2 - Nas versões oriundas de obras literárias, pode ser necessária a criação e/ou exclusão de personagens, falas e situações, a fim de tornar a obra cinematográfica mais fluida e compacta. Isso não significa que o livro esteja sendo mutilado, mas sim que ele passou por um processo de adaptação de linguagem por alguém que fez sua leitura particular e que preferiu enfatizar alguns trechos e personagens da obra literária. Tanto é que o mesmo livro, ao ser adaptado para o cinema ou televisão em épocas distintas adquirem feições diferentes, como aconteceu com o clássico romance “O amante de Lady Chatterley”, de D. H. Lawrence, que já teve diversas versões para o cinema (1981, 2006, 2015 e 2022), além de outras para a televisão. Em todos os casos, é possível perceber o olhar e as preferências técnicas dos diretores, o que, de alguma forma, altera a percepção dos amantes da sétima arte.

3 - Muitas pessoas só terão acesso a algumas obras literárias a partir das versões veiculadas em cinemas, tevês e demais telas. Nas décadas de 1950 a 1990, muitas pessoas que nunca tiveram acesso aos romances de Jorge Amado, Érico Verissimo e Nelson Rodrigues acabaram entrando em contato com as histórias e com os personagens desses e de outros autores a partir das versões que passavam na televisão e nos cinemas de todo o Brasil. Até hoje muitas pessoas comentam o sucesso de obras como ‘Bonitinha, mas ordinária”, “O beijo no asfalto” (Nelson Rodrigues); “Dona Flor e seus dois maridos”, “Tieta do Agreste” (Jorge Amado); “Olhai os lírios do campo”, “Ana Terra” (Érico Verissimo), além de obras como “Éramos seis” (Maria José Dupré), O Bem Amado (Dias Gomes), “Macunaíma” (Mário de Andrade) e Riacho Doce (José Lins do Rêgo), para ficar apenas em autores brasileiros que tiveram suas obras adaptadas.

Dessa forma, é sempre importante lembrar que livros e filmes (séries ou novelas) são obras diferentes em suas linguagens e estruturas. Todas elas têm seus espaços, seus públicos e seus momentos. Mas, de modo geral, uma não substitui a outra e elas podem ser vistas como experiências complementares e necessárias para a formação de nosso conhecimento. 

#Literatura

#Cinema

#LiteraturaeCinema



segunda-feira, 12 de maio de 2025

UM RESUMO DA SEMANA

 Novos artigos de segunda #31

NOSSA SEMANA

José Neres 




HABEMUS PAPAM 


Desta vez, a espera não foi tão longa assim. Após dois dias de Conclave, a fumaça branca anunciou que a Igreja Católica já tinha um novo Sumo Pontífice. 

Mal a notícia foi divulgada, como que por encanto, boa parte da população mundial se transformou em especialista não apenas em “Papalogia”, mas também em “Achologia” e em “Futurologia”. Nos grupos de mensagem, o que mais e lia era que o novo Papa era isso, era aquilo; que tudo havia sido uma armação mancomunada com certo presidente de certo País. Que o Papa Leão XIV, por haver nascido nos Estados Unidos, era incompetente, capitalista, anti-Cristo e daí por diante.

O mais interessante é que muitas pessoas que vivem pedindo compreensão e que dizem que é desumano julgar as pessoas apenas pelas informações superficiais, que é preciso esperar para poder tomar alguma decisão não apenas estavam julgando, como também condenando um homem que mal havia sido escolhido para um importante cargo e para uma função de grande responsabilidade.

É muita contradição, muita pressa para comentar o que não se sabe, pouco discernimento e muita vontade de aparecer…


CORRUPÇÃO 


A notícia de um desvio de seis bilhões e trezentos milhões de reais, depois transformados em cerca de noventa bilhões e depois projetados para cerca de duzentos bilhões foi destacada em todos os veículos de comunicação do Brasil, com repercussão em boa parte da imprensa mundial. 

Nós, brasileiros, como não temos boa memória, ainda nos assustamos com os escândalos e com as roubalheiras de nossos representantes. Mas o que causou espanto desta vez foi a condição das vítimas: pessoas aposentadas que lutam mês a mês pela sobrevivência. Idosos deveriam ser acolhidos, protegidos e amados, contudo são alvos fáceis para furtos e abusos.

Novamente, todos os envolvidos na falcatrua juram inocência e prometem investigação rápida, justa e certeira. Porém, pelo que se vê e se escuta, nossos políticos estão mais preocupados em jogar a sujeira na conta de seus respectivos desafetos do que em averiguar a veracidade dos fatos. 

Os dois lados agem como se fossem uma torcida organizada ou talvez uma facção tentando eliminar a concorrência: “A culpa é de Fulano!”, “O culpado é Sicrano!”. Até mesmo quem foi roubado toma partido e defende seus ídolos de barro.

Confesso que todo início de semana já fico imaginando qual será o próximo escândalo e quanto tempo essa indignação tão seletiva irá durar. 

Nossa sorte é que o Brasil é rico e pode ser sangrado à vontade por todas essas corjas que se penduram nas tetas do Estado ou que devoram os restos que foram deixados para trás. São abutres devorando a carne do povo mesmo antes que a Morte faça seu trabalho…


LANÇAMENTOS

Fonte da imagem: arquivo do autor


Quem vive em São Luís não pode reclamar de falta de lançamento de livros. Mas claro que todos aqueles que trabalham com a literatura podem lamentar a falta de público e o descaso com os escritores. 

No dia do lançamento de um livro, magicamente quase todo mundo tem algum compromisso inadiável e urgente, urgentíssimo…. mas o bom é que sempre há aquelas pessoas maravilhosas que comparecem e alegram a vida dos escritores.

Semana passada, estive em dois lançamentos. Coincidentemente, de duas mulheres pesquisadores falando sobre duas mulheres que já partiram, mas que deixaram suas marcas em nossa cultura 

Na sede da Academia Maranhense de Letras, a professora e pesquisadora Gabriela Santana escreveu mais um capítulo de nossa história literária ao publicar uma aprofundada pesquisa sobre Mariana Luz, uma importante escritora de Itapecuru, cuja obra tem sido resgatada, para a alegria de quem admira a boa prosa e a boa poesia em língua portuguesa.

No dia seguinte, foi a vez da pesquisadora e romancista Miriam Angelim brindar o público presente no auditório da AMEI com o lançamento de “Quando a poesia se fez Violeta do Campo”, um importante e necessário estudo sobre a vida e obra de Laura Rosa. 

Meus aplausos a quem continua escrevendo em uma terra onde as letras são desprezadas até mesmo por quem diz (em público) amá-las. Mas acho que esse amor “é da boca pra fora”, conforme podemos ouvir na letra de uma famosa música. 


AMIZADES COLORIDAS


Os últimos relatórios sobre os livros mais vendidos no Brasil deixaram bem claro que boa parte das pessoas tem preterido a leitura em prol da atividade de colorir desenhos. Quem observar com atenção, verá que em quase todos os lugares há alguém com um estojo de canetinhas e um livro-caderno com desenhos que serão calma e cuidadosamente coloridos.

Talvez seja apenas mais um hobby, um passatempo inocente para desestressar as pessoas durante ou depois de um exaustivo dia de trabalho. Mas talvez seja algo mais preocupante com seus reflexos em um futuro bem próximo. De qualquer forma, é visível que os livros estão nas mãos das pessoas, porém algumas estão cada dia mais distantes das palavras, das leituras e das outras pessoas.


DESPEDIDAS


Em menos de duas semanas, perdi duas colegas de profissão. Ambas foram boas companheiras de luta pela educação e deixaram suas marcas por onde passaram.

Primeiro, recebi uma mensagem de um colega anunciando falecimento da professora Michelle Bahury, uma flor de candura colhida no momento em que se preparava para realizar um de seus maiores sonhos.

Na véspera do Dia das Mães, ao me atualizar sobre as notícias do dia, encontro a notícia do passamento da professor Zenir Pontes, com quem trabalhei durante vários anos.

Registro aqui meus sentimentos por essas duas professoras que lutaram dia após dia por uma educação melhor. Meus respeitos a elas e meus sentimentos a todos os amigos e familiares. 

A Morte não costuma respeitar nossos sonhos e nem sempre deixa tempo para nossas despedidas...

segunda-feira, 5 de maio de 2025

NOTAS SOBRE EDUCAÇÃO

 Novos artigos de segunda #30

Imagem criada com auxílio de Inteligência artificial 

NOTINHAS SOBRE EDUCAÇÃO 

José Neres 


NOTA 1 - A burrocratização da educassão

O filme “Enjaulados” (1998) traz algumas interessantes metáforas sobre a Educação e seu processo burocrático. No meio de um caos escolar, com uma turma indisciplinada, bullying, violência física e verbal contra professores e alunos, denúncias de assédio sexual e total desinteresse pelas aulas, a coordenadora aborda o professor novato em diversos ambientes da escola e sempre faz a mesma observação: “O senhor ainda não entregou seus planos de aula!” 

Ora, a instituição escolar tem como um de seus principais objetivos oferecer condições para que os alunos possam exercer sua cidadania e receberem a instrumentalização cognitiva básica para que possam sobreviver fora dos muros da escola. No entanto, alguns “educadores” estão mais interessados no recebimento de um documento do que no que realmente ocorre nas salas, corredores e demais ambientes da escola. Parece que quando o plano de aula foi entregue na data, todo o ambiente se tornou magicamente melhor. Claro que a parte burocrática é importante, mas ela não deveria pautar toda a engrenagem institucional, sob a pena de a escola ser transformada em um depósito de papel e de seres humanos devidamente carimbados e arquivados.

A Educação de verdade vai muito além disso. Mas algumas pessoas não querem enxergar. 

Já entregou sem plano de aula?...


Imagem criada com auxílio de Inteligência artificial 


NOTA 2 - Sala de aula, zona de conflitos


Vez ou outra (na verdade, todos os dias) ouço colegas mais jovens dizendo que precisam negociar com a turma para que possam ministrar alguns minutos de aula. 

Compreendo. Mas confesso que acho estranho. 

Acabou de completar 34 anos de sala de aula como professor. Acredito que já tive mais de 70 mil alunos. Já presenciei muitos absurdos em sala de aula. Já vi muitos colegas desistirem da profissão… Agora vejo professores negociando para poderem exercer a própria profissão!!!

Professor não é administrador de bagunça. Professor é professor, ou pelo menos deveria ser...

Vez ou outra, paro e penso: “Que está acontecendo com a Educação?”. Não tenho nenhuma resposta satisfatória. Mas percebo que a sala de aula está se transformando em uma perigosa zona de conflitos. Isso é grave, gravíssimo. 

As ondas de violência sufocam a vontade dos professores. As indisciplinas parecem fazer parte dos uniformes escolares. As famílias estão ausentes e parece que jogam nas salas de aula os filhos que não querem ou não suportam na sala de estar das próprias casas. Os professores se sentem, quase sempre, desvalorizados, desestimulados, desamparados, derrotados… Saem da sala de aula com a sensação de que são sobreviventes de um campo de batalha…

E o que está sendo feito para alterar esse quadro caótico?

Sinceramente, se algo está sendo feito, não tem chegado aos meus olhos e ouvidos. 

As outras notinhas ficam para a próxima semana. Talvez!

Mas convido você a ler meu artigo - antigo - sobre o cotidiano em sala de aula. Basta clicar aqui.


Estou cansado. Vou dormir. Amanhã cedo estarei em sala de aula, lutando por um futuro melhor para todos…


segunda-feira, 28 de abril de 2025

GULLAR PARA CRIANÇAS

 Novos artigos de segunda #29

Hoje, trago de volta um artigo publicado no jornal 📰 O Estado do Maranhão em 2017.




GULLAR PARA CRIANÇAS DE TODAS AS IDADES

José Neres

 Quando faleceu, no final do fatídico ano de 2016, Ferreira Gullar (1930-2016) foi homenageado de muitas formas: artigos em jornais e revistas, programas de televisão e rádio, vídeos e depoimentos na internet, recitais de poemas, palestras, discursos e diversos outros tipos de aclamações (todas merecidíssimas) lembraram que o mundo das letras havia perdido um de seus mais completos intelectuais e que a cultura letrada brasileira estava de luto.

 Os noticiários chamaram a atenção para a multiplicidade de campos de conhecimentos que eram frequentados por Ferreira Gullar, afinal, por aproximadamente meio século ele vinha se destacando como poeta, cronista, tradutor, roteirista, crítico de arte, letrista, teatrólogo e memorialista. Mas, em meio a tantos lamentos, nuances e qualidades, poucas pessoas se lembraram de uma faceta menos conhecida desse grande escritor maranhense: suas incursões pelo mundo da literatura infanto-juvenil.

 Embora não tivessem o mesmo impacto inovador de livros como Poema Sujo, Dentro da Noite Veloz e A Luta Corporal, as obras de Gullar voltadas para as crianças têm também seus encantos a trazem as marcas típicas de um cultor das palavras que se propôs a escrever para um público que ainda não tinha desenvoltura suficiente para decifrar refinadas metáforas e destrinçar inusitados volteios sintáticos, mas que merecia entrar em contato com as produções dos grandes autores de nossa língua.

 Importante notar que, além de Ferreira Gullar, outros autores da primeira linha da literatura brasileira também utilizaram parte do tempo e do talento para tornar o universo particular das crianças mais belo, artístico e encantado, como é o caso de Clarice Lispector (A Mulher que Matou os Peixes), Cecília Meireles (O Isto ou Aquilo), Mário Quintana (Sapato Florido), Jorge Amado (O Gato Malhado e a Andorinha Sinhá), Graciliano Ramos (A Terra dos Meninos Pelados) e Josué Montello (A Cabeça de Ouro), dentre outros; sem contar também os talentosos escritores que se notabilizaram justamente por uma carreira dedicada quase que exclusivamente para a produção de obras destinadas ao público infantil e/ou juvenil. Nesse círculo de autores é impossível olvidar nomes como Pedro Bandeira, Lygia Bojunga Nunes, Ruth Rocha, Marcos Rey, Ana Maria Machado e Ziraldo.

 Mas no caso de Ferreira Gullar é diferente. Aparentemente suas obras classificadas como infantis ou infanto-juvenis foram escritas mais por diletantismo ou por desejo de brincar com as palavras do que por necessidade de inserir-se comercialmente nesse mercado tido como promissor e bastante rentável. 

 O primeiro trabalho infanto-juvenil publicado por Ferreira Gullar, em 2000, foi Um Gato Chamado Gatinho, um livro inspirado nas travessuras e manias do felino de estimação do poeta. O próprio Gullar explicou que “os poemas foram nascendo, sem pressa, motivados por cada nova descoberta que eu fazia a respeito do meu gato”, e adverte que o objetivo dos textos era serem “engraçados, agradáveis e divertidos”. Na época da publicação, o livro foi ilustrado pela artista Ângela Lago, mas aparece também no volume Poesia Completa, Teatro e Prosa, publicado em 2008 pela Editora Nova Aguilar, contudo apenas os textos, sem as ilustrações.

 Os poemas do livro, todos leves e escritos em uma linguagem simples, mas carregada de lirismo, é ideal para jovens e adultos que sentem afeição por gatos. Em cada poema o leitor vai se divertindo com as peripécias de um felino que acorda seu dono, briga com um gato das vizinhanças, tenta livrar-se de suas pulgas e até abocanha um peru de Natal que estava à mesa. Os versos trazem as marcas de um poeta atento à escolha lexical, às rimas e ao ritmo, mas que, principalmente, estava preocupado com a leveza do texto e em trabalhar a fanopeias necessárias à visualização das muitas aventuras do gato-protagonista.

 Cinco anos após chegar às livrarias seu primeiro livro infanto-juvenil, Ferreira Gullar publicou Dr. Urubu e Outras Fábulas. Novamente, em poemas curtos e escritos em uma linguagem bastante acessível, o poeta leva para ao mundo da fantasia vários animais – papagaio, formiga, macaco, abelha, cachorro, aranha, urubu, etc. – e tenta mostrar que é possível uma convivência harmônica entre os seres humanos e os considerados animais irracionais.

 Em cada poema um animal entra em cena, apresenta algumas de suas características básicas, às vezes conversa com uma criança e, sutilmente, chama atenção para a importância de todos para o equilíbrio do ecossistema. Mesmo escrevendo fábulas, o autor não se sentiu obrigação de recorrer à chamada moral da história no final de cada texto, mas deixa a possibilidade de que cada leitor tire suas conclusões a respeito do fato de que preciso educar olhar e a sensibilidade dos jovens para que haja respeito pela natureza, pois o ser humano não deve considerar-se mais importante que os demais componentes da natureza.

 Apesar de haver escrito poucas obras dirigidas ao público infantil, Ferreira Gullar também deixou as marcas de seu talento com as palavras nesse nicho pouco explorado de sua produção literária. E, mesmo sendo escritos para serem lidos por crianças, esses poemas gullarianos também podem dizer muito às pessoas de outras faixas etárias, afinal de contas a boa obra de arte não conhece os limites de idade.


O Urubu

(Ferreira Gullar) 

– Doutor Urubu,
a coisa está preta
A falta de chuva
matou a colheita
 – queixou-se a Raposa. – 
A fome é geral.
Até já me sinto mal!

E o Urubu, muito prosa,
mal disfarçando a cobiça:
– Tudo no mundo depende
do nosso ponto de vista...
Não acha, amiga ardilosa?
Para quem come carniça,
a coisa agora está branca,
ou melhor, está cor-de-rosa!

sexta-feira, 25 de abril de 2025

ARTIGO SOBRE ESCRITA

 A PRÁTICA DA ESCRITA

José Neres 

Imagem criada com auxílio de Inteligência artificial 


Iniciemos com uma historinha:

segunda-feira, 21 de abril de 2025

MONTELLO, UM FRAGMENTO DE MINHA TRAJETÓRIA

 Novos artigos de segunda #28

Fonte da imagem: o autor deste artigo


MONTELLO, UM FRAGMENTO DE MINHA TRAJETÓRIA 

José Neres 


Josué Montello entrou definitivamente em minha vida no primeiro semestre de 1994, quando cursei a disciplina Literatura Maranhense, magistralmente ministrada pela professora Sônia Baptista Ferreira, na Universidade Federal do Maranhão.

Mas, antes disso, em 1992, eu já havia iniciado os primeiros contatos com a obra desse autor tão importante para as nossas letras.

Explico.

Depois de deixar a área de exatas, mergulhei no mundo da literatura, da gramática e da linguística. Trabalhava, então, no antigo Colégio Brasil - no Anil, pela tarde, e na Cruz Vermelha, pela noite, e estudava Letras Português/Espanhol na UFMA. Como era praticamente impossível fazer algo no intervalo entre a Universidade e o serviço, eu me refugiava - depois do almoço - na Biblioteca Pública Benedito Leite. Ali, sempre fui muito bem recebido. Agradecimentos eternos a toda a equipe!

Ao chegar à BPBL, dirigia-me logo ao setor de Literatura Maranhense - que, na época, funcionava em uma sala pequena e abarrotada de livros, e lá ficava por horas. Cheguei a ler cerca de 80% do acervo. Foi nessa época que iniciei o contato com a obra montelliana. Um dia, a estagiária do Setor - que havia sido minha colega na Universidade - percebendo que eu sempre lia textos de Montello, me disse que ali perto havia uma  Casa inteiramente dedicada àquele escritor. 

Chegou a vez de cursar a disciplina de Literatura Maranhense. A professora pediu que lêssemos algumas obras: quatro sermões de Antônio Vieira, Inês e Pedro e A Paixão de Thomas More (de João Mohana), Cazuza (de Viriato Corrêa), Poema Sujo (de Ferreira Gilmar) e Os Tambores de São Luís (de Josué Montello). Comprei os dois livros de Mohana, tirei uma cópia de Cazuza - tinha já uma edição do Poema Sujo - e tive dificuldade de encontrar Os Tambores de São Luís, que, naquele tempo, além de ser uma obra cara para meus padrões, era também rara de encontrar.

Foi então que lembrei das palavras de minha colega Conceição sobre a Casa de Cultura Josué Montello. Cheguei lá desconfiado, suado, cansado e cheio de esperança. Pedi o livro. E comecei a lê-lo. Era uma obra volumosa. Aquela edição tinha pouco mais de 500 páginas. O debate sobre o livro estava marcado para dali a um mês. Daria tempo de vencer aquele calhamaço. Projetei. Iria ler cerca de 50 páginas por dia. Foi o que fiz.

Foi nessa época que descobrir que ser organizado e cumprir com um cronograma de leitura proposto por mim mesmo era algo difícil. O livro era empolgante e dava vontade de passar a tarde ali, acompanhando a saga de Damião. Mas o dever me chamava e eu precisava ir para o serviço. Durante duas semanas, cumpri meu compromisso vespertino com aquelas personagens. Muitas vezes, tive que deixar a leitura no meio de um clímax narrativo. Muitas vezes tive que esperar o final de semana passar, para voltar para aquela história tão envolvente.

Terminei o livro, apresentei o trabalho e virei assíduo frequentador da Instituição. Certa tarde, vi sobre uma das mesas da Casa, um caderno cheio de recortes de reportagens sobre Montello. Fiquei curioso, folheei o caderno e mergulhei em vários detalhes da vida e da obra daquele escritor. Confesso que pensei até em fazer minha monografia sobre algum livro dele. Mas desisti.

Dias depois, quando voltei, pedi para ler aqueles recortes, o álbum me foi negado - era algo reservado e nem devia ter tido acesso antes. Ainda. Em que hoje não é mais assim!

Graças à generosidade de uma amiga que na época ali estagiava, e cujo nome não posso revelar, pude ler quase todos aqueles recortes. 

Anotava tudo em blocos e, quando voltava para casa, datilografava - isso mesmo, datilografava - minhas anotações. Anos depois, essas observações se transformaram no livro MontelloO Benjamim da Academia, no qual narro a trajetória do autor de Cais da Sagração rumo a uma vaga na Academia Brasileira de Letras. 

Naquela Casa, li tantos outros livros, de diversos autores. Comecei também a adquirir obras montelliana. Devo ter hoje uns cinquenta ou sessenta livros escritos por ele ou sobre esse notável escritor. 

O tempo foi passando e os horários livres foram escasseando. Mas não abandonei a CCJM e sempre que podia estava lá, discreto e silencioso, sentado em minha mesinha próxima à janela. Uma vez, tive a sorte de ver o romancista pessoalmente. Ele aparentemente chegava de viagem. Cumprimentou amavelmente as poucas pessoas que ali estavam, me fez um breve acento e se recolheu. Valeu a pena!

Minha saga de admirador de Montello continuou. Assisti a diversas palestras sobre ele, li dezenas de seus livros, escrevi alguns artigos, prefácios, análises, ministrei palestras, orientei trabalhos em graduação e pós-graduação, participei de mesas-redondas, bancas acadêmicas… Lembro que, em março de 2006, quando o escritor partiu rumo à eternidade, escrevi um breve artigo para o jornal O Estado do Maranhão, do qual fui colaborador por mais de duas décadas. O artigo era bem simples e nele eu tecia a trajetória de Montello recorrendo aos títulos de seus livros. Uma singela, mas verdadeira homenagem a um escritor que acabou, involuntariamente, contribuindo para minha formação cultural. 

Lembro-me que, em Brasília encontrei um exemplar de A formiguinha que aprendeu a dançar e, em Campo Grande, encontrei A indesejada aposentadoria. Infelizmente, nas duas livrarias, nenhum dos atendentes sabia quem era Josué Montello. Mas não estranho isso. Isso já aconteceu aqui também... Nossos autores são desconhecidos até mesmo em nossa terra, que dirá em terras alheias.

Devo muito tanto à Biblioteca Pública Benedito Leite quanto à Casa de Cultura Josué Montello. Posso dizer que ali tenho duas extensões de meu lar.

Tudo isso me vem à memória hoje, quando acabei de reler a versão em quadrinhos do romance Os Tambores de São Luís realizada - e muito bem - pelo operoso pesquisador, escritor e roteirista Iramir Araújo e pelos talentosíssimos Rom Freire e Ronilson Freire.

Trata-se de um trabalho de fôlego que merece reconhecimento, pois servirá como referência tanto para os novos quanto para os antigos leitores da obra de Josué Montello.


Caso queira ler nosso soneto em homenagem a Montello, clique aqui.

segunda-feira, 14 de abril de 2025

A ARTE DO MICROCONTO

 Novos artigos de segunda #27



A ARTE DO MICROCONTO

José Neres


Ao ler um microconto, alguém pode até imaginar: “Ah, isso é fácil! Basta escrever uma história bem curtinha e pronto!” Mas não é bem assim…

O microconto exige que o escritor retire do texto toda e qualquer adiposidade verbal, que ele condense em poucas palavras toda uma narrativa que poderia ser contada com detalhes em muitas linhas ou páginas.

Enquanto os escritores em geral costumam escrever para depois irem eliminando as palavras desnecessárias, o microcontista corta as palavras antes mesmo de escrevê-las, o que torna a tarefa ainda mais complexa.

Na elaboração de um microconto, o autor não tem espaço para desenvolver alguns elementos como espaço, tempo ou até mesmo a personagem. Desse modo, é preciso apostar no imediatismo das ações e capturar cada cena como se utilizasse o recurso de um flash que nunca mais se repetirá.

É isso o que acontece, por exemplo, no microconto intitulado O Prudente, de José Renato Amorim (@jramorim.autor), reproduzido a seguir:


Acendeu o fósforo para ver se tinha gasolina no tanque. Tinha!


Conforme pode ser visto, em textos assim, cada palavra é essencial e cabe ao leitor preencher as lacunas com suas próprias expectativas e experiências prévias. O que veio antes e o que virá depois do evento perdem seu interesse diante do impacto causado pelo instantâneo ficcional capturado pelo autor. Até mesmo a escolha lexical com suas respectivas implicações na interpretação do texto, tem importância. Dessa forma, os fonemas sibilantes e fricativos do início do conto são substituídos paulatinamente pela hipótese de uma explosão a partir do uso das consoantes oclusivas. O resultado é deveras interessante.

Os autores de microcontos geralmente precisam também trabalhar com a duplicidade das palavras e com a agilidade das ações para conseguir o efeito necessário à concretização da ideia. Um dos contos exemplares nesse sentido é o de Lygia Fagundes Telles, no qual o duplo sentido da palavra leva o autor a se dividir entre a reflexão e o humor.


Fui me confessar ao mar. O que ele disse? 

Nada.


O papel dos sinais de pontuação em um microconto também pode ser decisivo para a intelecção da mensagem do texto. Dalton Trevisan, um dos mestres no uso desses recursos estilísticos, silenciosamente, sempre enfatizou a necessidade de o leitor compreender a colocação dos símbolos gráficos para o desenvolvimento da narrativa. Como ocorreu no texto abaixo, retirado do livro 101 Ais.


Na cama, diz o marido:

 - Você é gorda, sim. Mas é limpa.

- …

- Você é feia, certo? Mas é de graça.


O uso das reticências, da interrogação e dos pontos finais escondem muito mais do que pausas ou inflexões das vozes das personagens. Expressam uma afirmação enfática, a busca de concordância para a ideia compartilhada, a exposição de preferências estéticas, a possível condição financeira do homem e muitas outras informações que podem ser resgatadas pelo ato da leitura não apenas das palavras, mas também pela ênfase dada em cada parada estratégica. O silêncio assustado da mulher, representado pelo uso das reticências, é bastante eloquente e aprofunda a escala de absurdos ditos em poucas linhas.

Marcos Fábio Belo Matos (@marcosfabiomatos) é outro escritor que sempre apostou no minimalismo do texto escrito, com as possibilidades abertas para diversas interpretações. Em alguns de seus contos, o prosador deixa seus leitores no limiar da interpretação. No microconto a seguir, a chave para a leitura está na escolha do título - algo muito comum nos microcontos, o que faz com que a(s) palavra(s) do título se torne(m) mais um elemento interpretativo a ajudar o texto a se tornar ainda mais sintético.


Separação 

No carro, a filha voltou para o banco da frente.


A vaguidão proposital deixa o leitor escolher se quem está a dirigir o carro é o pai ou mãe, pois, de qualquer modo, o interesse recai no ato da separação e no local que agora é ocupado por outra pessoa, também da família, mas que estabelece uma nova possibilidade de direcionamento. De alguma forma, a presença da filha no banco da frente pode alterar a direção e o sentido do carro e do ato de dirigir. Ao mesmo tempo lembra que na parte de trás - simbologia do passado - deve haver um lugar vazio.

Um microconto deve ser capaz de impactar o leitor, não apenas pela brevidade, mas também pelo efeito das imagens congeladas a partir de palavras e de olhares. A composição às vezes se assemelha a uma aquarela que recebeu algum tipo de aditivo sinestésico. Então, o autor, mesmo utilizando um número limitado de palavras, consegue impregnar o texto de cores, cheiros, sons e emoções. O que não é fácil.

Nessa ideia de isolar trechos de uma escala de ações e transformá-los em frames de conturbadas vivências, o escritor Rinaldo de Fernandes (@rinaldodefernandes), outro grande mestre da narrativa curta, conseguiu em poucas palavras reproduzir uma comovente cena que necessitou de apenas três verbos (dois no presente e um no pretérito perfeito do indicativo) para demonstrar a repetição de uma ação que ocorre em looping e a certeza de um fato imutável. O título do conto - Água de cheirar - não traz uma função elucidativa, mas ajuda a enriquecer o conteúdo poético da imagem verbal.


Todo fim de tarde, o cachorro vem, cheira o rio onde o dono morreu.


Escrever microcontos é uma arte. Não é fácil transformar histórias em pequenas peças de ourivesaria verbal. Também não é fácil ler microcontos. Esse tipo de leitura exige que se enxergue além da evidência das palavras e que se mergulhe em um mar de possibilidades. 

Termino este breve artigo com a reprodução de um microconto de Cíntia Moscovich, autora que nos ensina sobre a instabilidade e a efemeridade da vida em apenas duas frases declarativas.


Uma vida inteira pela frente. O tiro veio por trás.

segunda-feira, 7 de abril de 2025

CADA DIA É O DIA

 Novos artigos de segunda # 26

Imagem criada com auxílio de Inteligência Artificial 


CADA DIA É O DIA 

(José Neres)


Venho de tempos antigos. 

Venho de tempos em que um “bom dia”, “boa tarde”, “boa noite”, “com licença”, “muito obrigado” e “Desculpe-me” eram frases que corriam soltas em todos os lugares onde as pessoas pudessem conviver harmonicamente. Hoje, essas expressões e palavras parecem obsoletas e estão caindo em total desuso. Os “sai da frente”, “não amola”, “vai tomar no **, “c@###lho” fazem parte até do vocabulário das crianças aparentemente inocentes.

Venho de um tempo em que os professores eram ouvidos com atenção e, em alguns casos, até aplaudidos após uma aula. Hoje, acesso a internet e me deparo com casos de professores agredidos por alunos, por familiares de alunos, por outros profissionais e até mesmo por colegas de profissão. Profissão de extremo risco, por sinal!

Venho de tempos em que bem cedo ou ao final de tarde, tomávamos bênção aos mais velhos, não importando se eram idosos da família ou não. Naquela época, as crianças não se metiam nas conversas de adultos e respeitavam até mesmo os mais simples olhares de reprovação. Atualmente, nada de pedir bênção ou de pelo menos parar para ouvir os idosos. “velho é tudo inútil…”, “não sei o que ainda quer por aqui. Já viveu o suficiente e agora só atrapalha a juventude…”, “se morrer, já vai tarde”...

Venho de um tempo em que até os besteirois que tocavam nas rádios tinham uma letra bem elaborada e pelo menos tinham algum tipo de harmonia que não feriam os ouvidos. Naquela época, os locutores tinham a voz bonita e pareciam saber um pouco de tudo. Hoje, sintonizar uma rádio é algo sofrível. As letras das músicas (?) são monocórdicas e muitas vezes têm apenas três ou quatro palavras que se repetem em um looping infinito. Os locutores muitas vezes se engasgam diante de palavras simples e muitos vivem em greve contra as concordâncias gramaticais. Uma pena!

Venho de um tempo em que os supermercados fechavam suas portas às 18 horas do sábado e só voltavam a abrir depois do meio-dia de segunda-feira. Procurávamos nos informar quais seriam as farmácias de plantão e os carros eram abastecidos até a noite de sábado, pois encontrar um posto aberto aos domingos era uma raridade. Atualmente, quase tudo funciona 24 horas e parece que não temos tempo para nada. Para ninguém. Nem para nós mesmos…

Venho de um tempo em que as notícias chegavam devagar. Perder os gols do domingo no bloco final do Fantástico era algo dolorido. Era preciso esperar o programa de esporte do dia seguinte e torcer para os gols serem reproduzidos. Nem sempre dávamos sorte. Hoje, temos quase tudo nas palmas das mãos e nas pontas dos dedos. E o tempo se esvai pelas frestas dos nossos dedos. Inexoravelmente. Nada podemos fazer…

Venho de um tempo em que tentávamos copiar as músicas que tocavam nas rádios ou que eram reproduzidas em um toca-fitas. Era uma bela oportunidade de aproveitar os acordes, aprender novas palavras e de beber um pouco do sorriso da pessoa amada, que, nem sempre estava ao nosso lado nos outros momentos. Hoje, com apenas poucos cliques, temos letras, músicas e cifras disponíveis. Muitas vezes, cada um de nós com seu fone de ouvido, só não temos o prazer de ouvir a voz da pessoa amada a ecoar em nossos corações repletos de espaços vazios.

Nostalgia? Talvez. Mas o dia de hoje também tem tantas coisas boas que não posso esquecer que também sou um ser de agora e, como escreveu o poeta venezuelano Arturo Uslar Pietri sempre me lembro que 

Cada día es el día y cada hora
es la única hora de la vida,
todo el ayer se fue en reminiscencia
y el mañana no existe todavía.

(Cada dia é o dia e cada hora
é a única hora da vida,
todo o ontem se perdeu em reminiscência
e o amanhã não existe ainda)

- tradução livre nossa -


Importante aproveitar o agora. Amanhã? Quem sabe? Quem sabe…

Eu juro que não sei.

Aventuras proibidas de Annie Sthephanie

  As aventuras proibidas de Annie Sthephanie Desculpe, mas Aqui não tem aventuras proibidas. Falamos apenas de arte, educação, cultura e out...