Caros alunos e alunas,
Preparamos um série com quatro vídeos sobre produção textual.
Apresentamos aqui o primeiro. A cada semana acrescentarmos outro.
Bom proveito!
Caros alunos e alunas,
Preparamos um série com quatro vídeos sobre produção textual.
Apresentamos aqui o primeiro. A cada semana acrescentarmos outro.
Bom proveito!
Novos artigos de segunda #24
CINCO BONS LIVROS QUE LI RECENTEMENTE
José Neres
Ler é uma atividade que exige algum esforço, mas que sempre traz muitos momentos de prazer para quem faz da leitura uma companheira sempre prestes a ajudar nas tarefas do dia a dia.
Gosto de ler e não considero um sacrifício ficar diante de um livro durante horas e passar a conviver com personagens imaginadas por outras mentes e que passam a habitar meu mundo mal começo a passar os olhos pelas páginas de um livro.
Há livros que lemos apenas para passar o tempo, mas há alguns deles que nos agarram pelo pescoço e nos obrigam a pensar neles mesmo depois de concluída a leitura da última página.
Vejamos a seguir uma pequena lista de cincos livros que li recentemente e que me fizeram repensar alguns conceitos e ideias sobre a literatura.
Ei-los:
1 - O homem invisível (H. G. Wells). Não é à toa que H. G. Wells é um dos nomes mais importantes da literatura universal. Em uma linguagem ágil e envolvente, ele consegue prender o leitor em uma narrativa que traz à tona diversos problemas e angústias de uma personagem complexa e cheia de nuances. Nesse livro, fica patente como um ser humano pode transformar-se em alguém capaz de tudo para alcançar seus objetivos.
2 - Os engenheiros do caos (Giuliano Da Empoli). Vi uma recomendação do filósofo e amigo Rogério Rocha e não me arrependi de ler cada página dessa obra que tenta destrinchar os meandros de uma arquitetura invisível, mas que está bem diante de nós e que pode alterar a vida de toda uma sociedade por gerações. Os algoritmos estão escondidos em cada clique que damos e tecem uma rede de oportunidades para uns e de intrigas para outros.
3 - Carolina (Sirlene Barbosa e João Pinheiro). Quem me conhece sabe que sou apaixonado pela obra de Carolina Maria de Jesus. Considero Quarto de despejo um livro capaz de alterar a rota de leitura de qualquer amante das letras. Então não pude perder a oportunidade de acompanhar a vida e a produção literária dessa escritora narradas em quadrinhos. Uma leitura fluida e agradável da primeira à última página.
4 - A Casa (Natércia Campos). Gosto muito de ler livros com narradores inusitados. Mas confesso que há algumas obras que eu não leria se não fosse uma indicação ou imposição de alguém em que confio integralmente na capacidade de ler além das aparências. Li, então, esse pequeno romance por indicação da professora Márcia Manir e aos poucos fui levado pela narrativa praticamente mítica de uma casa que narra para os leitores uma história inusitada, que conta seus segredos, que enternece, causa admiração e assusta ao mesmo tempo.
5 - A mulher que sequestrou Chico Buarque (Rinaldo de Fernandes). Nesse recente lançamento do professor, prosador e crítico maranhense Rinaldo de Fernandes o leitor de repente se vê envolvido por narrativas curtas que giram em torno de personagens problemáticas e de histórias que mesclam os diversos sentimentos que unem/separam as pessoas e as colocam em situações limítrofes quando se deparam com a obrigatoriedade de difíceis escolhas.
Bem. Aqui estão algumas das leituras que me fizeram refletir um pouco sobre essa agradável tarefa diária de mergulhar nas páginas de um bom livro.
FORMAS DE PAGAMENTO
José Neres
![]() |
Imagem criada com auxílio de Inteligência artificial |
Sábado...
Cynthya queria uma calça nova para fazer figura diante das colegas da escola...
Henzo desejava um tênis novo para jogar futsal com a galera. Não dava para ir de novo com o antigo.
Era ainda metade do mês e dona Clara sabia que a pensão do ex-marido só cairia dali a quinze dias. Gostava de ver os filhos felizes.
Seu Francisco, dono do mercadinho queria comprovar se o corpo da vizinha era realmente tão apetitoso quanto seu Manuel da padaria comentava. Quem sabe assim conseguiria recuperar um pouco dos fiados feitos por dona Clara...
Segunda-feira...
Cynthya estreava a calça nova na escola...
Henzo marcava um golaço com o novo tênis de futsal...
Dona Clara estava feliz com a alegria dos filhos...
Seu Francisco abriu o mercadinho cantarolando...
Terça-feira:
A família não teve pão, leite e margarina para o café da manhã.
Seu Manuel agora aceitava apenas pagamento em dinheiro, crédito, débito ou Pix.
Novos
artigos de segunda #23
(José Neres)
CARANGUEJOS E SIRIS
Hoje sou muitos, sou vário,
sou os múltiplos, sobremaneira um,
o que vai morrer no deserto,
com andar de caranguejo, às pressas.
Talvez sem rumo, isso sempre,
para todos os lados do meu único mundo,
meu singular mundo, rasgado por profecias
e magias, essa cabala inacabada.
Nossos agradecimentos ao poeta que nos permitiu caminhar sobre as águas de sua terra usando apenas o poder de suas palavras e de sua criatividade. Essas Velas náufragas não foram confeccionadas para afundar, mas sim para a salvação dos amantes da boa poesia contemporânea.
![]() |
Imagem criada com auxílio de Inteligência artificial |
TORCEDORA
(José Neres)
Ele apenas esboçou um sorriso cínico quando eu lhe disse que não queria mais nada com ele, pois estava apaixonada por outra pessoa.
Depois ficou sério e perguntou quem era o safado que estava me comendo?
Foi nessa hora que o desespero se apoderou de mim. Quando ele sorria, a situação nunca era boa.
“É o Mosquinha?
“ Não! Tá ficando doido. Mosquinha sempre foi como um irmão para mim…”
“Então é o Pau de Aço…”
“Jamais… ele é. Nojento… Meu Deus!!!...”
“Então só pode ser o Serginho…”
“Não. Não é. Não é ninguém de seu bando… e esses três faz um tempão que nem vejo. Devem estar até presos. Desapareceram e…”
Nesse momento, ele voltou a sorrir, mas dessa vez com sangue injetado nos olhos.
“Porra, sua puta, matei três dos melhores homens que já tive por tua causa e agora vem me dizer que nenhum deles te comeu e que está apaixonada por outro. Quem é? Diz logo. Que vou matar esse filha da puta e depois volto para acertar as contas contigo.”
Nunca tinha visto ele daquele jeito. Estava transtornado. Se eu não contasse, ele me mataria ali mesmo. Acabei confessando.
“É teu pai. Estou ficando com ele. Já ficamos três vezes…”
“Cala tua boca… vou te amarrar. Saio e mato o velho. Depois volto e acerto as contas contigo.”
Só tive tempo de perguntar: “Vai matar teu próprio pai? Tá doido?
“Para quem matou no mesmo dia três irmãos da quebrada, matar um pai escroto é fichinha.”
Saiu.
Não sei por quanto fiquei ali. Amarrada. Mas, para quem espera, qualquer minuto vira eternidade.
Voltou.
Aquele sorriso cínico não mais estampava seu rosto.
“Pronto. Acabou. O velho já era. Mas foi macho. Morreu sem confessar nada. Esquece. Acabou. Agora você é só minha e pronto. Mas não me traia mais, pois, da próxima vez…”
Me desamarrou e eu caí a seus pés chorando.
“Para de chorar, porra! Para de chorar, vai tomar um banho. Bota uma roupa transparente e volta cá. O jogo está para começar. Se meu time ganhar, vamos comemorar e esquecer toda essa merda. Mas, se perder…”
Não precisou completar. Tomei o melhor banho da minha vida. Vesti o que ele pediu e me tornei a torcedora mais fiel que existe.
Ele nunca mais tocou no assunto. Apenas no segundo domingo de agosto é que amanhece meio irritado, mas na hora do jogo geralmente se acalma.
DOMINGO GORDO DE CARNAVAL
José Neres
Foi em um domingo gordo de carnaval que conheci Heleninha. Não sei da parte dela, mas da minha foi amor à primeira vista.
Estava perto da meia-noite quando eu a avistei dançando atrás de um trio elétrico. Tocava a música do Jegue Folia. Naquele tempo ainda se podia acompanhar os cantores daqui em pleno carnaval. No São João também. E havia as festas de rua. Quem dava as cartas era a tradição. Nossos blocos passavam e todos ficavam boquiabertos. Era impossível ficar parado diante daquele som envolvente
Eram outros tempos. Existia até uma passarela para os desfiles das brincadeiras. Mataram nosso carnaval!
Foi justamente nesse momento que vi Heleninha. Chamou-me atenção primeiro aquele corpo bem torneado. Visivelmente fruto de horas e mais horas de malhação em uma academia. Depois observei o sorriso, os olhos, os cabelos… tudo ali era perfeito.
Eu estava parado. Deveria entrar na passarela logo depois que aquela brincadeira passasse. Quase sempre eu ensaiava uns passinhos de dança antes de chegar a minha vez de me destacar no meio de meus colegas. Porém, ao ver aquela menina, senti minhas pernas bambas, a boca seca, as mãos trêmulas e o coração acelerado. Não conseguia parar de olhá-la.
Ela veio se aproximando de mim. Parecia que me encarava. Não deu para ouvir, mas tenho quase certeza de que quando se aproximou de mim ela disse: “Gostei de sua fantasia…”
E passou rebolativa.
Era minha vez de entrar na passarela. Tinha que seguir um ritmo previamente ensaiado para não atrapalhar as pessoas do bloco, escola de samba ou brincadeira anterior. Não liguei para isso e acelerei meus passos.
Ao chegar perto dela, perguntei seu nome quase tocando os lábios em sua orelha esquerda. “Heleninha”, foi a resposta. “Gostei de você… sua fantasia é bem criativa! Topa ir para um lugar mais sossegado?”
Não pensei duas vezes, deixei de lado o instrumento que estava em minha mão, envolvi sua cintura em um abraço e tirei-a da multidão. Ela não caminhava, sambava em um ritmo alucinante. O som da música se tornava mais distante. As pessoas iam rareando e um paraíso se anunciava para mim…
Longe dos olhares, o local estava deserto e mal iluminado. Tirar a roupa dela foi uma tarefa fácil. Difícil foi me livrar da minha. Heleninha chorou de prazer. Eu também.
“Quero te encontrar de novo amanhã aqui. Topa? No mesmo lugar. Use a mesma fantasia. Não esqueça. Beijos”. E saiu caminhando sozinha, quase correndo, sem olhar para trás, enquanto eu tentava encontrar minha roupa, para me vestir e acompanhá-la.
Desapareceu.
Voltei para o ponto onde estava quando a vi pela primeira vez. Nada. Encontrei meus companheiros. Ninguém me perguntou onde eu estivera. Daqui a pouco seria hora de entrarmos novamente na passarela…
De manhã, voltei para casa. Pensando nela, me masturbei por quase uma hora, antes de adormecer.
Na noite seguinte. Com a mesma roupa, esperei-a no mesmo lugar. Ela não apareceu.
Nunca mais apareceu…
Já se passaram muitos carnavais e nunca mais a vi. Na verdade nem sei o nome dela. Nem sei se realmente estive com ela. Nem sei se ela existe ou existiu. Minha única certeza foi o que aconteceu na minha casa antes de eu ter sido derrotado pelo sono.
Mas, por via das dúvidas, mesmo tendo sido demitido logo depois daquela noite, por haver desaparecido do serviço, todo domingo gordo de carnaval, abro minha gaveta, separo o antigo uniforme de agente da limpeza pública, pego uma vassoura e sigo esperançoso, para algum local onde haja festa de carnaval.
Quem sabe um dia desses Heleninha apareça e reconheça minha fantasia… Nossa fantasia…
Artigo de segunda #22
LEITURAS COM MÚSICA AO FUNDO
(José Neres)
Não tem jeito! Toda vez que cai em minhas mãos um livro no qual o autor transcreve ou cita alguma canção teimo em fazer uma pausa na leitura para ouvir a referida música.
Como os bons autores geralmente planejam suas obras e constroem suas personagens com muito cuidado, acabo acreditando que aquelas músicas citadas me oferecem uma importante oportunidade de me aproximar do narrador, da personagem, da época e do ambiente no qual se passa a história. É um momento propício também para entrar em contato com alguns compositores e intérpretes até então pouco ouvidos ou mesmo desconhecidos para mim.
Coincidentemente, os dois romances que li semana passada estão eivados de momentos musicais, oferecendo-me uma playlist de extremo bom gosto e que muito acrescentou a meus parcos conhecimentos sobre música
O primeiro livro foi “Era uma vez no Pantanal: uma saga transfronteiriça”, (Biografary, 2024, 123 páginas), de Gilberto Luiz Alves. Trata-se de uma história que atravessa grande parte do século XX e que tem seu início cronológico justamente no dia 1⁰ de janeiro de 1900. (Se quiser saber mais sobre esse livro, clique aqui)
O protagonista - Juanito Balbuena - é um homem bom e sofrido que tem suas raízes históricas fincadas entre o Paraguai e Porto Murtinho, que hoje faz parte de Mato Grosso do Sul. Durante suas andanças, Juanito Balbuena trabalhou em lugares como Corumbá, região dos Paiaguás e Nhecolândia. Quase sempre afastado da família, o rapaz leva em sua bagagem os poucos pertences que possui, a vontade de vencer na vida, muita saudade, um violão e as composições com as quais consola um pouco de suas dores e a de muitas pessoas que cruzam por seu caminho.
Logo na página 27 do livro, enquanto a personagem acompanhavam as procissões em homenagem a Santo Antônio Cuiabano, deparei-me com os seguintes versos:
Não resisti. Fui procurar algum registro fonográfico na internet e encontrei uma bela interpretação da música que, confesso, não conhecia.
As músicas acompanham a trajetória do protagonista e servem para acalmar e enternecer os personagens do romance. Mais adiante, na página 71, encontrei a letra de uma música que há muito eu não ouvia. Corri para matar a saudade de Cálix Bento, que fez muito sucesso na bela voz de Milton Nascimento.
O outro livro impregnado de música e de musicalidade foi, Sul da fronteira, oeste do sol (Alfaguara, 2020, 230 páginas), de Haruki Murakami.
Impossível não se impressionar com a simplicidade da trama da narrativa que envolve a paixão juvenil de Shimamoto e Hajime. Impossível também não parar para ouvir a melodiosa voz de Nat King Cole interpretando “Pretend” ou “South of the border”, parte da trilha sonora que embala os encontros e desencontros do casal.
Ao longo do livro, o leitor por se deliciar com a sugestão para ouvir a comovente “Star-Crossed Lovers”, que foi imortalizada na interpretação de Duke Ellington. O autor também nos faz um convite para passar pelas composições de Liszt e por outras preciosas peças da música universal.
Esses dois livros apresentam muitas coincidências entre si. Em ambos os casos, as personagens vêm ao mundo em datas que marcam o início de novos ciclos, levam uma vida comum e cheia de perdas, são marcadas por músicas, deixam um ar de mistério em suas trajetórias e se deslocam constantemente em busca de algo que talvez nem elas mesmas sejam capaz de compreender.
A literatura e a música são capazes de ligar pessoas tão fisicamente distantes entre si e juntá-las inclusive pelas diferenças e singularidades específicas de suas culturas e lugaridades. Às vezes, tudo o que importa é o ritmo que a vida nos imprime nas páginas de nossas vidas.
Vale a pena sentir a musicalidade com que os autores embalam suas narrativas. No final, todos ganham
Artigo de segunda #21
ERA UMA VEZ NO PANTANAL…
(José Neres)
Gilberto Luiz Alves é um renomado professor e pesquisador que tem seu nome constantemente atrelado a estudos sobre educação, cultura e história. Livros de sua autoria como “A produção da escola pública contemporânea”, “O trabalho didático na escola moderna: formas históricas”, “O pensamento burguês no Seminário de Olinda: 1800-1836” e “Educação e história em Mato Grosso: 1719-1864” são essenciais para a compreensão dos diversos momentos que marcaram a história da educação no Brasil.
É relevante também a importância desse professor nos estudos relativos à arte indígena, ao meio ambiente e à ocupação e desenvolvimento dos espaços regionais, como pode ser visto em publicações como “A casa comercial e o capital financeiro em Mato Grosso: 1870-1929”, “Pantanal da Nhecolândia e a modernização tecnológica”, “Cultura e singularidades culturais”, “Águas que educam: O Pantanal e sua história na pintura sul-mato-grossense” e “Cerâmica indígena contemporânea em Mato Grosso do Sul”, sem contar os diversos livros organizados e e os inúmeros artigos publicados em revistas acadêmicas.
Nos últimos anos, porém, o professor Gilberto, sem deixar de lado seu tino de pesquisador, tem dedicado parte de seu tempo à poesia e à elaboração de textos ficcionais. Fruto desse trabalho artístico, acaba de chegar às mãos dos leitores seu romance intitulado “Era uma vez no Pantanal - uma saga transfronteiriça” (Biografary, 2024, 123 páginas).
Dividido em 18 breves e bem articulados capítulos, o livro traz a história de Juanito Balbuena, um trabalhador sério e honesto que tem o dom de dialogar com os animais e que bem cedo deixa sua família - pai, mãe e irmã - em busca de melhores condições de vida. Ao longo de sua trajetória, o protagonista se depara com inúmeras adversidades, mas também consegue conquistar diversos amigos e admiradores.
Partindo da intrincada relação entre as singularidades locais e a universalidade que emana da própria condição humana, o autor constrói suas personagens de forma meticulosa e consegue fazer o necessário liame entre o capítulo inicial e o final. Tudo isso de modo coerente, ácido e poético ao mesmo tempo.
Após sair de casa, Juanito Balbuena se vê imerso em um redemoinho de acontecimentos e de emoções. De modo bastante sútil, mas explorando os efeitos com certa dose de contundência social, o autor aproveita a trajetória do protagonista para elaborar uma série de denúncias, que vão desde a exploração do trabalho humano até a violência que ameaça a todos, passando pelas relações de poder e pelas fraturas familiares. No livro, cada personagem aparece de forma estratégica e tem sua importância no decorrer da narrativa, inclusive o menino Ambrósio, que a princípio aparenta ser apenas mais um componente em uma estrutura social já defendia, mas acaba se tornando um dia eixos norteadores da grande interrogação que atravessa o livro.
Em “Era uma vez no Pantanal” não sobra espaço para fórmulas mágicas e para soluções simples. Ali, o homem, a história, a natureza e os aspectos sociais se encontram imbricados de tal forma que torna muito difícil separar esses elementos sem prejudicar toda uma estrutura narrativa.
Cientes da ideia de que “o Pantanal é lindo de se ver, mas difícil de se viver” (Pág. 77), as personagens do romance acabam adaptando-se ao meio em que vivem e, a partir das experiências vividas, passam a perceber que no mundo existem pessoas boas, mas que também está repleto de gente má. O conjunto dessas descobertas leva as personagens a uma convivência com as desilusões com relação ao ser humano. Não é à toa que uma das frases capitais do livro perde seu valor positivo e assume a forma negativa no final da narrativa.
Livro de viés regionalista, com pitadas de realismo mágico, “Era uma vez no Pantanal” é uma narrativa ficcional, mas que remete a casos que realmente podem ter acontecido. Poderia ser um relatório de pesquisa. Poderia ser uma biografia… Enfim, é um livro essencial para quem deseja conhecer um pouco da saga de tantos homens e mulheres que compõem a história do Brasil como um todo.
Novos artigos de segunda #20
MEDO DE ESCREVER
(José Neres)
NOVOS ARTIGOS DE SEGUNDA #19
![]() |
Imagem criada com auxílio de Inteligência Artificial |
DE VOLTA ÀS AULAS
(José Neres)
Hoje muitos
alunos das escolas públicas do Maranhão (e de boa parte do Brasil) retornam às
aulas.
Para alguns,
esse é um momento de plena alegria. É a oportunidade de poder pelo menos sonhar
com um futuro melhor, lastreado pelos conhecimentos adquiridos ao longo das
centenas de aulas que serão ministradas. Para estes, a escola ainda é vista
como uma tábua de salvação contra a pobreza, a ignorância, a marginalização e
os diversos perigos que assombram e ameaçam nossos jovens.
Para outros,
no entanto, voltar para a sala de aula pode ser visto como uma inexplicável
sessão de tortura física e mental. Para os componentes desse grupo, estudar é
algo sem sentido e muitos só voltarão para a escola motivados pelos recursos
pecuniários que irão receber a partir de programas estatais. Mesmo assim, irão
movidos também pelas pressões familiares, pois sem a comprovação de presença os
benefícios serão cancelados.
Claro que
nem todos os estudantes voltarão para a escola nesta segunda-feira. Alguns prolongarão
as férias por mais alguns dias ou semanas. E acharão essa procrastinação normal
e até necessária.
Mas, quando
voltar para a sala de aula, mesmo os alunos mais distraídos perceberão algumas mudanças.
Perceberão que os estudos relativos à língua e à cultura espanhola fazem parte do passado, pois alguém decidiu que os alunos não precisam estudar o idioma de nossos vizinhos. Em um evidente retrocesso educacional, algum “gênio” com uma poderosa caneta na mão resolveu negar aos alunos a oportunidade de ter pelo menos os rudimentos de uma língua tão importante quanto a espanhola. Já falamos sobre isso em outro artigo. (Caso queira ler, clique aqui)
Perceberão que o já minguado horário destinado à leitura e à produção de texto desapareceu. Não há motivos para comemoração. Os conteúdos relativos à produção textual foram encampados pelas aulas de Língua Portuguesa. Ou seja, se com quatro horários os professores já encontravam dificuldades em cumprir toda a extensa programação, agora terão que destinar pelo menos um quarto da carga horária para fazer algo que já era deficitário por si mesmo. Brevemente, colheremos os resultados desse desajuste. Se a intenção é tirar oportunidade dos alunos, o caminho está correto.
Perceberão
que os aparelhos de telefonia móvel – celulares – foram banidos das salas de
aula, podendo serem utilizados somente em casos específicos e quando houver necessidade
pedagógica. Claro que alguns alunos (e professores também) viverão uma síndrome de abstinência, outros se
revoltarão e praticamente todos irão aventar alguma possiblidade de burlar a
nova regra. Vamos esperar para ver os resultados de mais uma lei que tem tudo
para ser bela no papel, mas de aplicação problemática.
Perceberão
que algumas disciplinas tiveram a carga horária alterada (para mais ou para
menos), que alguns componentes foram aglutinados e que outros aparecem como
verdadeiras novidades. Mas é preciso ir para a aula para conhecer tais
mudanças.
De
qualquer forma, mesmo diante de certas inconsistências proporcionadas por quem
vê a Educação apenas com uma fonte de dados estatísticos, voltar para as salas
de aula é uma experiência de vital importância para quem sabe que estudar é uma
das formas mais dignas de lutar por um futuro melhor
Boas aulas a todos!.
Novos artigos de segunda #18
![]() |
Imagem criada com auxílio de Inteligência Artificial |
CINCO REFLEXÕES SOBRE LEITURA
José Neres
1 - LIVROS NA GRANDE REDE
Nos primeiros dias do ano, passei algumas horas assistindo a vídeos dos chamados “influenciadores digitais” falando sobre uma das tecnologias mais analógicas que há: o livro.
Muitos faziam sugestões de leitura de autores e livros clássicos. Alguns demonstravam que entenderam apenas a superfície de algumas obras. Outros se mostravam indignados com o fato de que livro de que não gostaram ser considerado um clássico. Quase todos exibiam uma pilha de livros diante de si e falavam a quantidade de obras lidas no ano anterior ou faziam projeções do que pretendem ler neste ano que se inicia.
Independentemente de gostar ou não das “análises”, resenhas e comentários, uma detalhe chamou minha atenção: como tem gente falando de livros na internet! Comprando, divulgando, sugerindo e comentando obras literárias.
Que bom! Fico feliz!
Há preciosidades perdidas no charco da internet.
2 - PARA QUE TANTA PRESSA?
Há muita gente confundindo quantidade de leitura com qualidade de leitura.
Pouco adianta alguém dizer que leu 123 livros em 2024, se nem todos os livros foram devidamente digeridos.
Na minha concepção, um bom livro deve ser consumido com a mesma calma e paciência com que se saboreia um belo prato em um bom restaurante.
Sou mais fã da leitura lenta, tranquila e saborosa do que da chamada “leitura dinâmica”. Se o texto é bom, nem tenho a menor pressa de que ele chegue ao fim. Se estou gostando da companhia das personagens, não quero que elas partam.
Tenho até pressa para ler, mas não tenho pressa ao ler.
Aprendi com o mestre Josué Montello que devemos ler “como um passarinho bebe água”, ou seja, pegamos um pouquinho do que lemos, levantamos a cabeça, contemplamos o céu, agradecemos pelas preciosidades que recebemos e voltamos para receber mais uma porção de sabedoria… Sem pressa!
3 - A IMPORTÂNCIA DA RELEITURA
Reler não é uma tarefa fácil. Muitas pessoas pensam que ler uma obra pela segunda, terceira ou quarta vez seja algo fácil. Para mim, não.
Se for a releitura de um trabalho teórico, percebo a quantidade de detalhes importantíssimos que deixei passar na leitura anterior.
Caso seja o retorno a uma obra de ficção, tenho que tomar cuidado para que as antecipações dos fatos e o aparente conhecimento das ações não façam com que eu salte por cima de palavras que foram estrategicamente colocadas pelo autor.
Muitas vezes, sinto que estou a ler pela primeira vez um livro que já visitei tantas vezes. Sou surpreendido pelo cinismo de personagens que me espreitam e medem o grau de minha ignorância.
4 - LER POEMAS?
Quando ministrava aulas de Poesia espanhola e Hispanoamericana em uma Universidade Federal, certa vez fiz uma pergunta para a turma (cerca de oito alunos): “Vocês gostam de ler poemas? O silêncio foi constrangedor e mais constrangedores foram os comentários depois: “Detesto poesia”. “Não entendo nada”. “Quando o professor explica, até que entendo, mas depois vou ler e não lembro de nada”. “Deus me livre de poesia!”.”Prefiro uma dor de dente”...
Conversei com a colega que trabalhava com Estudo de Poesia de Língua Portuguesa. O desalento foi o mesmo. O máximo que os alunos conseguiram era parafrasear trechos dos poemas. Pouco conseguiam mergulhar nos aspectos fônicos, semânticos e estruturais dos poemas.
Lamentável. A leitura de poemas é realmente um desafio para todo e qualquer leitor. Mas também é uma forma prazerosa de entrar em contato com ideias e pensamentos que podem mudar nosso modo de ver o mundo.
Mas será que alguém quer mesmo mudar sua forma de ver o mundo? Ou será que não é melhor deixar tudo como está. Para que pensar, se alguém pensará por nós?
5 - CINISMO
Certa vez, durante uma aula da saudade, um formando declarou em alto e bom som que se sentia feliz em se formar sem ter lido sequer um livro ou feito um trabalho.
No final, para constrangimento de todos, agradeceu a um colega que, em troca de dinheiro, fez todos os trabalhos por ele…
Os sorrisos pálidos não derramaram suas nuvem sobre os fogos lançados durante a formatura e nem desbotaram o sorriso daquele “profissional” em seu álbum de recordações da universidade.
![]() |
Crédito da imagem: Laura Barros Neres |
Nasci em São José de Ribamar e disso tenho muito orgulho. Até recebi de presente o nome do Santo. Presto, então, minha homenagem ao Santo do qual minha mãe e meu pai eram devotos.
MISTÉRIOS DE RIBAMAR
(José Neres)
SJR, 23.01.2025.
Novos artigos de segunda #17
OUTONO DE CARNE ESTRANHA
José Neres
No início da década de 1980, eu era um dos tantos garotos que moravam no Parque Estrela D’Alva, que, naquela época, não passava de um incipiente loteamento ligado à cidade de Luziânia (GO).
Todo final de mês, uma das vizinhas - Chamada Maria de Lourdes (não declinarei o sobrenome), sabendo que eu estudava em Luziânia, pedia-me um favor: “Você pode ir até o banco e ver se tem algum depósito para mim?” Sem problema. Eu chegava ao banco, enfrentava uma pequena fila e fazia a pergunta ao caixa. A resposta era, invariavelmente, não.
Um dia, depois de muitos meses dessa angustiada espera, ela me falou o porquê daquele pedido mensal: seu marido havia partido para o garimpo de Serra Pelada e ficou de enviar-lhe dinheiro para o sustento da família.
*******
A literatura tem o dom de despertar memórias afetivas que estavam jogadas nos desvãos do esquecimento. Digo isso por perceber que hoje, mais de quatro décadas depois, dona Maria de Lourdes, que, provavelmente, já deve ter feito sua viagem final, voltou à minha memória, como se eu ainda fosse aquele garoto na fila do banco
E como isso aconteceu? Simples, na leitura do livro Outono de carne estranha (Editora Record, 2023, 176 páginas), escrito por Airton Souza, vencedor do Prêmio SESC de Literatura em 2023.
Trata-se de um romance ambientado justamente em Serra Pelada, durante o período em que a esperança de enriquecer no garimpo levou milhares de pessoas àquele local. Muitos não conseguiram enriquecer e nem mesmo tiveram a sorte de voltar para o seio de suas famílias.
Utilizando uma linguagem que mescla a crueza de algumas descrições e metáforas carregadas de poeticidade, Airton Souza constrói sua narrativa a partir de uma relação homoafetiva e suas consequências dentro de uma sociedade explicitamente violenta e eivada de preconceitos.
Ao longo do romance, o leitor entra em contato com cenas que evocam assassinatos, torturas, desmandos e ameaças. Tudo em um tom realístico e repleto de dores, odores e fluidos corporais. O que pode chocar alguns leitores menos afeitos aos estilos adotados pelas narrativas contemporâneas.
Porém, quem se ativer apenas às cenas de sexo e/ou de violência irá perder a oportunidade de entrar em contato com um texto poeticamente bem elaborado e com discussões que podem ir além dos entornos de Serra Pelada e de uma época historicamente datada.
Embora o romance seja centrado em um ponto específico de um Brasil das décadas finais do século XX, as críticas e denúncias levantadas pelo autor assumem um caráter universal e não apenas regional. Um exemplo disso é a constante, porém quase sempre invisível presença do marechal e de seus bate-paus. Além de representarem a vigilante presença de um Estado que apenas explora, vigia e pune - sem nada oferecer em troca -, eles são também a viva metáfora de um medo que se apresenta diante do trabalhador em forma de armas brancas, armas de fogo, palavras e até de silêncios.
No livro, Zuza e Manel vão muito além de um casal homoafetivo. Eles são a representação icônica de uma parte da sociedade que se vê impotente diante de fatos e de ordens absurdas, mas que devem ser cumpridas. Representam também os passados silenciados pelos poderes e que só podem ser revividos pelas recordações. Contudo, diante das condições adversas, até mesmo as memórias passam a não serem confiáveis.
No livro, há espaço para quase todos os seres humanos a quem foram negadas condições básicas de vida. Há o padre desencantado com tudo. Há as prostitutas que se entregam em trocas de algumas cédulas. Há a família que ficou distante e que espera o retorno do ente querido. Há quem não possa assumir publicamente a própria sexualidade. Há quem não suporte as pressões do garimpo. Há o explorador e o explorado. Há quem apenas sonhe em um dia bamburrar…
Bamburrar - que significa enriquecer com o ouro encontrado no garimpo - é uma das palavras que norteiam o livro e as reações das personagens. Logo se descobre que bamburrar não é apenas questão de sorte ou de esforço próprio. É preciso também sobreviver às diversas formas de exploração. É preciso inclusive lutar para manter a sanidade mental.
Quase no final do romance, na página 172 do livro, é possível encontrar uma frase que resume tudo: “Em Serra Pelada, cada homem era apenas a continuação de sua própria desgraça”. Uma síntese perfeita para vidas que se reconhecem como vítimas constantes de tantos abusos. Ali, cada palavra dita pode se transformar em um permanente alvo colado a alguma parte essencial de quem ousou sonhar.
Outono de carne estranha é um livro para ser lido com calma. Antes de iniciar a leitura das primeiras páginas, seria bom trancar todos os preconceitos em um imaginário cofre e partir rumo a um terreno desconhecido, onde dores e odores se impregnarão em sua alma e em sua pele, mandando inclusive seu modo de encarar as realidades alheias.
********
Termino o livro e volto a pensar em dona Maria de Lourdes. Será que algum dia, depois que eu fui embora da cidade, apareceu algum dinheiro em sua conta? Será que o marido dela bamburrou e depois voltou para casa? Será que morreu no garimpo? Será que foi perseguido pelo marechal? Será que conheceu alguém parecido com Manel e Zuza? Será?
Nunca saberei… Mas pelo menos a literatura me permite imaginar e desejar que tudo tenha dado certo.
Novos artigos de segunda #16
VAPOROSA: UM POEMA DE LAURA ROSA
(José Neres)
![]() |
Reprodução de foto que estava em reposição na VXII Feira do Livro de São Luís |
Uma das características mais recorrentes na produção poética da escritora e professora Maranhense Laura Rosa (1884-1976) é a sua capacidade de, utilizando-se de estruturas e de vocabulário simples, representar a complexidade humana em poemas singelos e que, à primeira vista, parecem superficiais.
É o que ocorre, por exemplo, em Vaporosa, poema composto por apenas cinco estrofes e que foi publicado no jornal A Folha do Povo, em 26 de outubro de 1926, há quase um século, mas que ainda pode ser lido com certo grau de atualidade, conforme reprodução abaixo.
Sem descuidar dos aspectos estruturais e fônicos - enfatizando as rimas alternadas e a métrica em redondilha maior - a autora estabeleceu um imaginário diálogo entre um eu lírico feminino e uma nuvem que vaga pelo céu. O centro da discussão é a possibilidade ou não de haver ventura, em sua totalidade, na terra.
Interpretando-se a palavra “ventura” com o seu sentido mais literal e imediato - o de boa sorte, sucesso ou felicidade - o eu lírico deseja encontrar fora do mundo terreno a resposta para seus anseios. Assim como ocorria nas cantigas trovadorescas de amigo, no poema de Laura Rosa, a mulher, talvez na impossibilidade de manter um diálogos com as pessoas que a cercam, recorre aos elementos da natureza para desabafar e fazer suas confidências.
No entanto, em pleno início de século XX, a autora não mais recorria a elementos que estivessem presos ao rés do chão, pois, aparentemente, suas dúvidas estavam acima das possibilidades de respostas terrenas. A escolha lexical por “véu” e “neblina”, apesar de estar ancorada na necessidade de combinar palavras que rimassem com os demais versos da estrofe, remetem também o leitor a uma atmosfera de mistério e de opacidade. E, diante desse fato, somente as forças divinas poderiam trazer alguma possibilidade de interpretação.
A opção de personalizar a palavra Ventura a partir do uso de iniciais em letras maiúsculas, em uma atitude que remete à estética simbolista, envolve também a necessidade de utilização de fonemas fricativos que evocam a passagem do ar e o deslocamento das nuvens pelo céu. Dessa forma, é possível notar a presença de palavras que trazem fonemas representados pelas letras S, F, V, C e Ç. Esses detalhes aparentemente fortuitos podem contribuir para a interpretação e intelecção do poema, já que não temos ali apenas um amontoado de palavras, mas uma cuidadosa escolha vocabular a partir do anseio da construção de uma imagem poética a ser destrinçada tanto pelos aspectos sonoros, quanto pela estrutura gráfica do texto.
Outro detalhe significativo é o fato de o eu lírico saber como se escreve Ventura na terra, mas indagar como essa mesma palavra é escrita no céu. Ou seja, não é que ela não conheça o que seja Ventura, mas sim o desejo de conhecer a “Ventura completa”, o que demonstra uma espécie de descontentamento para com o que já tem ou conheceu e uma busca de fatores desconhecidos que possam completar uma equação para a qual possivelmente não se tem uma resposta completa.
A resposta da nuvem - que vem quase em forma de charada - demonstra que parte das respostas para se chegar a conhecer a Ventura em totalidade não pode ser encontrada facilmente, já que parte dela está na terra (representando o lado material da vida) e a outra parte só pode ser encontrada no céu (uma simbologia da morte e dos mistérios indevassáveis).
Creio que Laura Rosa seja uma escritora que apresenta margens para diversos estudos. Sua obra ainda não está totalmente conhecida e há diversas facetas que precisam ser exploradas. Vale a pena conhecer o trabalho dessa escritora que passou tanto tempo no limbo de um injusto esquecimento.
Novos artigos de segunda #15
E se Pound lesse o “Arabesco” de Laura Amélia Damous?...
José Neres
Em um de seus estudos sobre literatura, o crítico e poeta norte-americano Ezra Pound diz que a poesia é “a mais condensada forma de expressão verbal”. A princípio, essa afirmação pode parecer algo simples e até mesmo óbvio. Contudo, quando visto com mais atenção, esse enunciado pode descortinar um universo de possibilidades e remeter a inúmeras leituras que já fizemos e que talvez não tenham ficado claras no ato da leitura, mas que ainda ecoam em nossa memória afetiva, mesmo que não frequentem mais a superfície de nossa consciência.
Pound considera também que a ”grande literatura é simplesmente linguagem carregada de significado até o máximo grau possível”. Claro que qualquer que seja o gênero literário, o texto é sempre composto por palavras e mais palavras. Porém, em muitos casos, a não-palavra também “toca” os olhos, os ouvidos, a alma e coração do leitor. De alguma forma, os textos que ficam eternizados em nossa memória são formados de palavras e de silêncios. As palavras estão impressas nas páginas dos livros e podem ser transformadas em som, quando são recitadas em voz alta.
Os silêncios, por sua vez, são diferentes e despertam sensações diversas em pessoas diferentes, dependendo do momento em que são “sentidos”. É o não-dito que acaba impregnando de sentido o que foi dito, a partir de uma experiência única e irrepetível, pois em uma outra leitura, em um outro momento, os silêncios já podem nada dizerem ou terem se transformado em sussurros ou gritos. A cada nova leitura não temos mais a inocência que tínhamos antes daquela marcante experiência. Ninguém se banha duas vezes na mesma água do mesmo rio, como deixou claro o sábio Heráclito de Éfeso.
À primeira vista, o livro Arabesco (Lithograf, 2010, 54 páginas) é uma obra de pequenas dimensões físicas e contém apenas 31 (trinta e um) breves poemas, sendo que nenhum deles ocupa mais que uma página. No entanto, essa primeira impressão pode ser totalmente desconstruída quando alguém se propõe a mergulhar nos versos de sua autora - Laura Amélia Damous, uma escritora capaz de, pacientemente, incrustar as palavras exatas e necessárias em versos que primam pela construção do sentido de modo sussurrante e não aos gritos
Logo no primeiro poema do livro, até mesmo o leitor mais apressado é obrigado a frear seus ímpetos e refletir diante dos seguintes versos do poema intitulado Oásis:
Os mais apressados poderiam pensar que se trata de uma tentativa de construir um hai-cai, poema de origem oriental que busca captar algum flash da natureza e provocar algum tipo de reflexão acerca das aparentes simplicidades da vida. Porém, no caso de Oásis, a forma parece ser apenas um detalhe. Há muito mais a ser observado. O fato de a palavra “dor” ocupar a posição superior dos versos, de ser aparente proprietária da “tenda” onde está acomodada deixa evidente que ela se encontra em uma posição privilegiada, que se sente estabelecida e que dali não deseja sair.
Significativo também é o título do poema. A tenda ocupada pela “dor”, para dali espreitar os entornos seria o “Oásis”? Estaria a autora, de modo silencioso, estabelecendo um diálogo intertextual com o incômodo “ tédio do deserto” imortalizado por Álvares de Azevedo? Pode ser que sim, pode ser que não. Mas, de qualquer modo, o leitor se sente na obrigação de parar naquele oásis e meditar um pouco sobre o tudo e o nada que nos rodeiam.
Mais adiante, no poema Infiel, o eu lírico se identifica como uma
Novamente, a escolha lexical e a posição dos vocábulos no poema trazem suas consequências para a intelecção do cerne do texto. O par significativo “pastora de nuvens” encontra-se estrategicamente ancorado no início, no meio e no fim do poema, o que possibilita uma leitura tanto de cima para baixo, quanto de baixo para cima. Porém, ao se optar por ler na ordem inversa, percebe-se que há uma mudança de percepção. Os “olhos vazados” e os “pés decepados” deixam de ser algo simétrico e transmitem a impressão de que os elementos da natureza - as nuvens - são os únicos que permanecem inalterados (aparentemente), pois, sem os pés, perde-se o ponto de sustentação e, com os olhos vazados, as nuvens ocupam definitivamente o papel de irrelevância da (im)possibilidade de ter os pés presos ao chão.
Trata-se de uma metáfora interessante que possibilita múltiplas possibilidades de interpretação, o que comprova o trabalho estético de Laura Amélia Damous com as palavras e sua preocupação em ir além das aparências, instigando seus leitores a buscarem novas possibilidades de leitura. Mas, possivelmente, muitos desistiram da leitura ou preferiam ficar apenas na superfície das palavras.
Pound, ao falar do poder transformador da educação, dialogaria com a autora de Arabesco e diria que “a verdadeira educação deve limitar-se, exclusivamente, aos homens que INSISTEM em conhecer, o resto é pastoreio de ovelhas”.
Porém, Laura Amélia Damous parece não corroborar com esse radicalismo do crítico norte-americano. No lugar da força, das demonstrações de poder e dos esgarçamento das relações, a escritora maranhense prefere as sutilezas da linguagem, conforme pode ser visto no poema a seguir, intitulado Aprendiz:
Essas lições da pedra ou pela pedra, que são tão caras à poética de escritores como João Cabral de Melo Neto e Carlos Drummond de Andrade, encontram, nesse livro de Laura Amélia Damous a dimensão da necessária dicotomia em busca de um possível diálogo. Esse olhar que pode ver a pedra a partir de diferentes prismas e que consegue enxergar nela o dualismo necessário à compreensão da dialética da complexidade dos eventos e possibilidades remete às ideias defendidas por pensadores como Edgar Morin e Maria Cândida de Moraes, que preferem apostar na conciliação entre as várias esferas do conhecimento que em um conflito com o objetivo de impor a prevalência de um olhar único e absoluto.
Como pode ser visto, o fato de o livro Arabesco ser uma obra de pequenas dimensões físicas não impede de ele ser um grande livro, capaz de levantar questionamentos.
Provavelmente, Pound gostaria de ler esse livro, principalmente ao constatar que sua autora , quando escreve, opta por “não usar de maneira alguma palavras que não contribuam para a apresentação”. Tudo nesse livro parece estar em seu devido lugar e, de suas páginas emerge a certeza de que:
Novos artigos de segunda #27 A ARTE DO MICROCONTO José Neres Ao ler um microconto, alguém pode até imaginar: “Ah, isso é fácil! Basta escr...