segunda-feira, 28 de abril de 2025

GULLAR PARA CRIANÇAS

 Novos artigos de segunda #29

Hoje, trago de volta um artigo publicado no jornal 📰 O Estado do Maranhão em 2017.




GULLAR PARA CRIANÇAS DE TODAS AS IDADES

José Neres

 Quando faleceu, no final do fatídico ano de 2016, Ferreira Gullar (1930-2016) foi homenageado de muitas formas: artigos em jornais e revistas, programas de televisão e rádio, vídeos e depoimentos na internet, recitais de poemas, palestras, discursos e diversos outros tipos de aclamações (todas merecidíssimas) lembraram que o mundo das letras havia perdido um de seus mais completos intelectuais e que a cultura letrada brasileira estava de luto.

 Os noticiários chamaram a atenção para a multiplicidade de campos de conhecimentos que eram frequentados por Ferreira Gullar, afinal, por aproximadamente meio século ele vinha se destacando como poeta, cronista, tradutor, roteirista, crítico de arte, letrista, teatrólogo e memorialista. Mas, em meio a tantos lamentos, nuances e qualidades, poucas pessoas se lembraram de uma faceta menos conhecida desse grande escritor maranhense: suas incursões pelo mundo da literatura infanto-juvenil.

 Embora não tivessem o mesmo impacto inovador de livros como Poema Sujo, Dentro da Noite Veloz e A Luta Corporal, as obras de Gullar voltadas para as crianças têm também seus encantos a trazem as marcas típicas de um cultor das palavras que se propôs a escrever para um público que ainda não tinha desenvoltura suficiente para decifrar refinadas metáforas e destrinçar inusitados volteios sintáticos, mas que merecia entrar em contato com as produções dos grandes autores de nossa língua.

 Importante notar que, além de Ferreira Gullar, outros autores da primeira linha da literatura brasileira também utilizaram parte do tempo e do talento para tornar o universo particular das crianças mais belo, artístico e encantado, como é o caso de Clarice Lispector (A Mulher que Matou os Peixes), Cecília Meireles (O Isto ou Aquilo), Mário Quintana (Sapato Florido), Jorge Amado (O Gato Malhado e a Andorinha Sinhá), Graciliano Ramos (A Terra dos Meninos Pelados) e Josué Montello (A Cabeça de Ouro), dentre outros; sem contar também os talentosos escritores que se notabilizaram justamente por uma carreira dedicada quase que exclusivamente para a produção de obras destinadas ao público infantil e/ou juvenil. Nesse círculo de autores é impossível olvidar nomes como Pedro Bandeira, Lygia Bojunga Nunes, Ruth Rocha, Marcos Rey, Ana Maria Machado e Ziraldo.

 Mas no caso de Ferreira Gullar é diferente. Aparentemente suas obras classificadas como infantis ou infanto-juvenis foram escritas mais por diletantismo ou por desejo de brincar com as palavras do que por necessidade de inserir-se comercialmente nesse mercado tido como promissor e bastante rentável. 

 O primeiro trabalho infanto-juvenil publicado por Ferreira Gullar, em 2000, foi Um Gato Chamado Gatinho, um livro inspirado nas travessuras e manias do felino de estimação do poeta. O próprio Gullar explicou que “os poemas foram nascendo, sem pressa, motivados por cada nova descoberta que eu fazia a respeito do meu gato”, e adverte que o objetivo dos textos era serem “engraçados, agradáveis e divertidos”. Na época da publicação, o livro foi ilustrado pela artista Ângela Lago, mas aparece também no volume Poesia Completa, Teatro e Prosa, publicado em 2008 pela Editora Nova Aguilar, contudo apenas os textos, sem as ilustrações.

 Os poemas do livro, todos leves e escritos em uma linguagem simples, mas carregada de lirismo, é ideal para jovens e adultos que sentem afeição por gatos. Em cada poema o leitor vai se divertindo com as peripécias de um felino que acorda seu dono, briga com um gato das vizinhanças, tenta livrar-se de suas pulgas e até abocanha um peru de Natal que estava à mesa. Os versos trazem as marcas de um poeta atento à escolha lexical, às rimas e ao ritmo, mas que, principalmente, estava preocupado com a leveza do texto e em trabalhar a fanopeias necessárias à visualização das muitas aventuras do gato-protagonista.

 Cinco anos após chegar às livrarias seu primeiro livro infanto-juvenil, Ferreira Gullar publicou Dr. Urubu e Outras Fábulas. Novamente, em poemas curtos e escritos em uma linguagem bastante acessível, o poeta leva para ao mundo da fantasia vários animais – papagaio, formiga, macaco, abelha, cachorro, aranha, urubu, etc. – e tenta mostrar que é possível uma convivência harmônica entre os seres humanos e os considerados animais irracionais.

 Em cada poema um animal entra em cena, apresenta algumas de suas características básicas, às vezes conversa com uma criança e, sutilmente, chama atenção para a importância de todos para o equilíbrio do ecossistema. Mesmo escrevendo fábulas, o autor não se sentiu obrigação de recorrer à chamada moral da história no final de cada texto, mas deixa a possibilidade de que cada leitor tire suas conclusões a respeito do fato de que preciso educar olhar e a sensibilidade dos jovens para que haja respeito pela natureza, pois o ser humano não deve considerar-se mais importante que os demais componentes da natureza.

 Apesar de haver escrito poucas obras dirigidas ao público infantil, Ferreira Gullar também deixou as marcas de seu talento com as palavras nesse nicho pouco explorado de sua produção literária. E, mesmo sendo escritos para serem lidos por crianças, esses poemas gullarianos também podem dizer muito às pessoas de outras faixas etárias, afinal de contas a boa obra de arte não conhece os limites de idade.


O Urubu

(Ferreira Gullar) 

– Doutor Urubu,
a coisa está preta
A falta de chuva
matou a colheita
 – queixou-se a Raposa. – 
A fome é geral.
Até já me sinto mal!

E o Urubu, muito prosa,
mal disfarçando a cobiça:
– Tudo no mundo depende
do nosso ponto de vista...
Não acha, amiga ardilosa?
Para quem come carniça,
a coisa agora está branca,
ou melhor, está cor-de-rosa!

sexta-feira, 25 de abril de 2025

ARTIGO SOBRE ESCRITA

 A PRÁTICA DA ESCRITA

José Neres 

Imagem criada com auxílio de Inteligência artificial 


Iniciemos com uma historinha:

segunda-feira, 21 de abril de 2025

MONTELLO, UM FRAGMENTO DE MINHA TRAJETÓRIA

 Novos artigos de segunda #28

Fonte da imagem: o autor deste artigo


MONTELLO, UM FRAGMENTO DE MINHA TRAJETÓRIA 

José Neres 


Josué Montello entrou definitivamente em minha vida no primeiro semestre de 1994, quando cursei a disciplina Literatura Maranhense, magistralmente ministrada pela professora Sônia Baptista Ferreira, na Universidade Federal do Maranhão.

Mas, antes disso, em 1992, eu já havia iniciado os primeiros contatos com a obra desse autor tão importante para as nossas letras.

Explico.

Depois de deixar a área de exatas, mergulhei no mundo da literatura, da gramática e da linguística. Trabalhava, então, no antigo Colégio Brasil - no Anil, pela tarde, e na Cruz Vermelha, pela noite, e estudava Letras Português/Espanhol na UFMA. Como era praticamente impossível fazer algo no intervalo entre a Universidade e o serviço, eu me refugiava - depois do almoço - na Biblioteca Pública Benedito Leite. Ali, sempre fui muito bem recebido. Agradecimentos eternos a toda a equipe!

Ao chegar à BPBL, dirigia-me logo ao setor de Literatura Maranhense - que, na época, funcionava em uma sala pequena e abarrotada de livros, e lá ficava por horas. Cheguei a ler cerca de 80% do acervo. Foi nessa época que iniciei o contato com a obra montelliana. Um dia, a estagiária do Setor - que havia sido minha colega na Universidade - percebendo que eu sempre lia textos de Montello, me disse que ali perto havia uma  Casa inteiramente dedicada àquele escritor. 

Chegou a vez de cursar a disciplina de Literatura Maranhense. A professora pediu que lêssemos algumas obras: quatro sermões de Antônio Vieira, Inês e Pedro e A Paixão de Thomas More (de João Mohana), Cazuza (de Viriato Corrêa), Poema Sujo (de Ferreira Gilmar) e Os Tambores de São Luís (de Josué Montello). Comprei os dois livros de Mohana, tirei uma cópia de Cazuza - tinha já uma edição do Poema Sujo - e tive dificuldade de encontrar Os Tambores de São Luís, que, naquele tempo, além de ser uma obra cara para meus padrões, era também rara de encontrar.

Foi então que lembrei das palavras de minha colega Conceição sobre a Casa de Cultura Josué Montello. Cheguei lá desconfiado, suado, cansado e cheio de esperança. Pedi o livro. E comecei a lê-lo. Era uma obra volumosa. Aquela edição tinha pouco mais de 500 páginas. O debate sobre o livro estava marcado para dali a um mês. Daria tempo de vencer aquele calhamaço. Projetei. Iria ler cerca de 50 páginas por dia. Foi o que fiz.

Foi nessa época que descobrir que ser organizado e cumprir com um cronograma de leitura proposto por mim mesmo era algo difícil. O livro era empolgante e dava vontade de passar a tarde ali, acompanhando a saga de Damião. Mas o dever me chamava e eu precisava ir para o serviço. Durante duas semanas, cumpri meu compromisso vespertino com aquelas personagens. Muitas vezes, tive que deixar a leitura no meio de um clímax narrativo. Muitas vezes tive que esperar o final de semana passar, para voltar para aquela história tão envolvente.

Terminei o livro, apresentei o trabalho e virei assíduo frequentador da Instituição. Certa tarde, vi sobre uma das mesas da Casa, um caderno cheio de recortes de reportagens sobre Montello. Fiquei curioso, folheei o caderno e mergulhei em vários detalhes da vida e da obra daquele escritor. Confesso que pensei até em fazer minha monografia sobre algum livro dele. Mas desisti.

Dias depois, quando voltei, pedi para ler aqueles recortes, o álbum me foi negado - era algo reservado e nem devia ter tido acesso antes. Ainda. Em que hoje não é mais assim!

Graças à generosidade de uma amiga que na época ali estagiava, e cujo nome não posso revelar, pude ler quase todos aqueles recortes. 

Anotava tudo em blocos e, quando voltava para casa, datilografava - isso mesmo, datilografava - minhas anotações. Anos depois, essas observações se transformaram no livro MontelloO Benjamim da Academia, no qual narro a trajetória do autor de Cais da Sagração rumo a uma vaga na Academia Brasileira de Letras. 

Naquela Casa, li tantos outros livros, de diversos autores. Comecei também a adquirir obras montelliana. Devo ter hoje uns cinquenta ou sessenta livros escritos por ele ou sobre esse notável escritor. 

O tempo foi passando e os horários livres foram escasseando. Mas não abandonei a CCJM e sempre que podia estava lá, discreto e silencioso, sentado em minha mesinha próxima à janela. Uma vez, tive a sorte de ver o romancista pessoalmente. Ele aparentemente chegava de viagem. Cumprimentou amavelmente as poucas pessoas que ali estavam, me fez um breve acento e se recolheu. Valeu a pena!

Minha saga de admirador de Montello continuou. Assisti a diversas palestras sobre ele, li dezenas de seus livros, escrevi alguns artigos, prefácios, análises, ministrei palestras, orientei trabalhos em graduação e pós-graduação, participei de mesas-redondas, bancas acadêmicas… Lembro que, em março de 2006, quando o escritor partiu rumo à eternidade, escrevi um breve artigo para o jornal O Estado do Maranhão, do qual fui colaborador por mais de duas décadas. O artigo era bem simples e nele eu tecia a trajetória de Montello recorrendo aos títulos de seus livros. Uma singela, mas verdadeira homenagem a um escritor que acabou, involuntariamente, contribuindo para minha formação cultural. 

Lembro-me que, em Brasília encontrei um exemplar de A formiguinha que aprendeu a dançar e, em Campo Grande, encontrei A indesejada aposentadoria. Infelizmente, nas duas livrarias, nenhum dos atendentes sabia quem era Josué Montello. Mas não estranho isso. Isso já aconteceu aqui também... Nossos autores são desconhecidos até mesmo em nossa terra, que dirá em terras alheias.

Devo muito tanto à Biblioteca Pública Benedito Leite quanto à Casa de Cultura Josué Montello. Posso dizer que ali tenho duas extensões de meu lar.

Tudo isso me vem à memória hoje, quando acabei de reler a versão em quadrinhos do romance Os Tambores de São Luís realizada - e muito bem - pelo operoso pesquisador, escritor e roteirista Iramir Araújo e pelos talentosíssimos Rom Freire e Ronilson Freire.

Trata-se de um trabalho de fôlego que merece reconhecimento, pois servirá como referência tanto para os novos quanto para os antigos leitores da obra de Josué Montello.


Caso queira ler nosso soneto em homenagem a Montello, clique aqui.

segunda-feira, 14 de abril de 2025

A ARTE DO MICROCONTO

 Novos artigos de segunda #27



A ARTE DO MICROCONTO

José Neres


Ao ler um microconto, alguém pode até imaginar: “Ah, isso é fácil! Basta escrever uma história bem curtinha e pronto!” Mas não é bem assim…

O microconto exige que o escritor retire do texto toda e qualquer adiposidade verbal, que ele condense em poucas palavras toda uma narrativa que poderia ser contada com detalhes em muitas linhas ou páginas.

Enquanto os escritores em geral costumam escrever para depois irem eliminando as palavras desnecessárias, o microcontista corta as palavras antes mesmo de escrevê-las, o que torna a tarefa ainda mais complexa.

Na elaboração de um microconto, o autor não tem espaço para desenvolver alguns elementos como espaço, tempo ou até mesmo a personagem. Desse modo, é preciso apostar no imediatismo das ações e capturar cada cena como se utilizasse o recurso de um flash que nunca mais se repetirá.

É isso o que acontece, por exemplo, no microconto intitulado O Prudente, de José Renato Amorim (@jramorim.autor), reproduzido a seguir:


Acendeu o fósforo para ver se tinha gasolina no tanque. Tinha!


Conforme pode ser visto, em textos assim, cada palavra é essencial e cabe ao leitor preencher as lacunas com suas próprias expectativas e experiências prévias. O que veio antes e o que virá depois do evento perdem seu interesse diante do impacto causado pelo instantâneo ficcional capturado pelo autor. Até mesmo a escolha lexical com suas respectivas implicações na interpretação do texto, tem importância. Dessa forma, os fonemas sibilantes e fricativos do início do conto são substituídos paulatinamente pela hipótese de uma explosão a partir do uso das consoantes oclusivas. O resultado é deveras interessante.

Os autores de microcontos geralmente precisam também trabalhar com a duplicidade das palavras e com a agilidade das ações para conseguir o efeito necessário à concretização da ideia. Um dos contos exemplares nesse sentido é o de Lygia Fagundes Telles, no qual o duplo sentido da palavra leva o autor a se dividir entre a reflexão e o humor.


Fui me confessar ao mar. O que ele disse? 

Nada.


O papel dos sinais de pontuação em um microconto também pode ser decisivo para a intelecção da mensagem do texto. Dalton Trevisan, um dos mestres no uso desses recursos estilísticos, silenciosamente, sempre enfatizou a necessidade de o leitor compreender a colocação dos símbolos gráficos para o desenvolvimento da narrativa. Como ocorreu no texto abaixo, retirado do livro 101 Ais.


Na cama, diz o marido:

 - Você é gorda, sim. Mas é limpa.

- …

- Você é feia, certo? Mas é de graça.


O uso das reticências, da interrogação e dos pontos finais escondem muito mais do que pausas ou inflexões das vozes das personagens. Expressam uma afirmação enfática, a busca de concordância para a ideia compartilhada, a exposição de preferências estéticas, a possível condição financeira do homem e muitas outras informações que podem ser resgatadas pelo ato da leitura não apenas das palavras, mas também pela ênfase dada em cada parada estratégica. O silêncio assustado da mulher, representado pelo uso das reticências, é bastante eloquente e aprofunda a escala de absurdos ditos em poucas linhas.

Marcos Fábio Belo Matos (@marcosfabiomatos) é outro escritor que sempre apostou no minimalismo do texto escrito, com as possibilidades abertas para diversas interpretações. Em alguns de seus contos, o prosador deixa seus leitores no limiar da interpretação. No microconto a seguir, a chave para a leitura está na escolha do título - algo muito comum nos microcontos, o que faz com que a(s) palavra(s) do título se torne(m) mais um elemento interpretativo a ajudar o texto a se tornar ainda mais sintético.


Separação 

No carro, a filha voltou para o banco da frente.


A vaguidão proposital deixa o leitor escolher se quem está a dirigir o carro é o pai ou mãe, pois, de qualquer modo, o interesse recai no ato da separação e no local que agora é ocupado por outra pessoa, também da família, mas que estabelece uma nova possibilidade de direcionamento. De alguma forma, a presença da filha no banco da frente pode alterar a direção e o sentido do carro e do ato de dirigir. Ao mesmo tempo lembra que na parte de trás - simbologia do passado - deve haver um lugar vazio.

Um microconto deve ser capaz de impactar o leitor, não apenas pela brevidade, mas também pelo efeito das imagens congeladas a partir de palavras e de olhares. A composição às vezes se assemelha a uma aquarela que recebeu algum tipo de aditivo sinestésico. Então, o autor, mesmo utilizando um número limitado de palavras, consegue impregnar o texto de cores, cheiros, sons e emoções. O que não é fácil.

Nessa ideia de isolar trechos de uma escala de ações e transformá-los em frames de conturbadas vivências, o escritor Rinaldo de Fernandes (@rinaldodefernandes), outro grande mestre da narrativa curta, conseguiu em poucas palavras reproduzir uma comovente cena que necessitou de apenas três verbos (dois no presente e um no pretérito perfeito do indicativo) para demonstrar a repetição de uma ação que ocorre em looping e a certeza de um fato imutável. O título do conto - Água de cheirar - não traz uma função elucidativa, mas ajuda a enriquecer o conteúdo poético da imagem verbal.


Todo fim de tarde, o cachorro vem, cheira o rio onde o dono morreu.


Escrever microcontos é uma arte. Não é fácil transformar histórias em pequenas peças de ourivesaria verbal. Também não é fácil ler microcontos. Esse tipo de leitura exige que se enxergue além da evidência das palavras e que se mergulhe em um mar de possibilidades. 

Termino este breve artigo com a reprodução de um microconto de Cíntia Moscovich, autora que nos ensina sobre a instabilidade e a efemeridade da vida em apenas duas frases declarativas.


Uma vida inteira pela frente. O tiro veio por trás.

segunda-feira, 7 de abril de 2025

CADA DIA É O DIA

 Novos artigos de segunda # 26

Imagem criada com auxílio de Inteligência Artificial 


CADA DIA É O DIA 

(José Neres)


Venho de tempos antigos. 

Venho de tempos em que um “bom dia”, “boa tarde”, “boa noite”, “com licença”, “muito obrigado” e “Desculpe-me” eram frases que corriam soltas em todos os lugares onde as pessoas pudessem conviver harmonicamente. Hoje, essas expressões e palavras parecem obsoletas e estão caindo em total desuso. Os “sai da frente”, “não amola”, “vai tomar no **, “c@###lho” fazem parte até do vocabulário das crianças aparentemente inocentes.

Venho de um tempo em que os professores eram ouvidos com atenção e, em alguns casos, até aplaudidos após uma aula. Hoje, acesso a internet e me deparo com casos de professores agredidos por alunos, por familiares de alunos, por outros profissionais e até mesmo por colegas de profissão. Profissão de extremo risco, por sinal!

Venho de tempos em que bem cedo ou ao final de tarde, tomávamos bênção aos mais velhos, não importando se eram idosos da família ou não. Naquela época, as crianças não se metiam nas conversas de adultos e respeitavam até mesmo os mais simples olhares de reprovação. Atualmente, nada de pedir bênção ou de pelo menos parar para ouvir os idosos. “velho é tudo inútil…”, “não sei o que ainda quer por aqui. Já viveu o suficiente e agora só atrapalha a juventude…”, “se morrer, já vai tarde”...

Venho de um tempo em que até os besteirois que tocavam nas rádios tinham uma letra bem elaborada e pelo menos tinham algum tipo de harmonia que não feriam os ouvidos. Naquela época, os locutores tinham a voz bonita e pareciam saber um pouco de tudo. Hoje, sintonizar uma rádio é algo sofrível. As letras das músicas (?) são monocórdicas e muitas vezes têm apenas três ou quatro palavras que se repetem em um looping infinito. Os locutores muitas vezes se engasgam diante de palavras simples e muitos vivem em greve contra as concordâncias gramaticais. Uma pena!

Venho de um tempo em que os supermercados fechavam suas portas às 18 horas do sábado e só voltavam a abrir depois do meio-dia de segunda-feira. Procurávamos nos informar quais seriam as farmácias de plantão e os carros eram abastecidos até a noite de sábado, pois encontrar um posto aberto aos domingos era uma raridade. Atualmente, quase tudo funciona 24 horas e parece que não temos tempo para nada. Para ninguém. Nem para nós mesmos…

Venho de um tempo em que as notícias chegavam devagar. Perder os gols do domingo no bloco final do Fantástico era algo dolorido. Era preciso esperar o programa de esporte do dia seguinte e torcer para os gols serem reproduzidos. Nem sempre dávamos sorte. Hoje, temos quase tudo nas palmas das mãos e nas pontas dos dedos. E o tempo se esvai pelas frestas dos nossos dedos. Inexoravelmente. Nada podemos fazer…

Venho de um tempo em que tentávamos copiar as músicas que tocavam nas rádios ou que eram reproduzidas em um toca-fitas. Era uma bela oportunidade de aproveitar os acordes, aprender novas palavras e de beber um pouco do sorriso da pessoa amada, que, nem sempre estava ao nosso lado nos outros momentos. Hoje, com apenas poucos cliques, temos letras, músicas e cifras disponíveis. Muitas vezes, cada um de nós com seu fone de ouvido, só não temos o prazer de ouvir a voz da pessoa amada a ecoar em nossos corações repletos de espaços vazios.

Nostalgia? Talvez. Mas o dia de hoje também tem tantas coisas boas que não posso esquecer que também sou um ser de agora e, como escreveu o poeta venezuelano Arturo Uslar Pietri sempre me lembro que 

Cada día es el día y cada hora
es la única hora de la vida,
todo el ayer se fue en reminiscencia
y el mañana no existe todavía.

(Cada dia é o dia e cada hora
é a única hora da vida,
todo o ontem se perdeu em reminiscência
e o amanhã não existe ainda)

- tradução livre nossa -


Importante aproveitar o agora. Amanhã? Quem sabe? Quem sabe…

Eu juro que não sei.

quinta-feira, 3 de abril de 2025

CONTO: OLHOS INCÔMODOS

 OLHOS INCÔMODOS

(José Neres)

Imagem criada com auxílio da Inteligência Artificial 


Eu morria de raiva do olhar de tarado que ele dirigia a mim todas as vezes que eu passava perto do campinho para ir à escola.

Ele parecia me despir com os olhos e penetrar todos os meus poros com aquele olhar obsceno.

Resolvi mudar meu caminho. Não deu certo. Agora ele ficava em um barzinho bem perto da escola e me via entrando e saindo. Nunca me dirigiu uma palavra, mas olhava de um jeito incômodo para minhas pernas, para meu traseiro.

Foi por isso que deixei de usar short ou bermuda. Só uso calças. E bem folgadas…

Não tive coragem de conversar sobre isso com meu pai ou com minha mãe. Provavelmente meu pai iria dizer que eu estava inventando coisas. Minha mãe, por outro lado, talvez até me batesse. Parece que todos eles eram amigos de infância…

Naquele tempo, eu, inocente, não pensei em denunciar. Naquela época olhar não era crime… hoje a coisa está bastante diferente.

Estou com trinta e dois anos e tenho uma criança que começa a ir sozinha para a escola. 

E ele continua lá. Mas agora olha de forma obscena para mim e para minha criança. Dói e incomoda ver aquele merda de olho grudado em nossas pernas e em nossas nádegas.

Não preciso recorrer a meu pai e minha mãe. Eles já não estão aqui. Sei que consigo resolver meus problemas...

Vou comprar um revólver e tirar satisfações com ele. Agora ele é apenas um velho tarado que precisa receber uma lição… um tiro bem no olho deve resolver.

Já chega!

Ele me incomodou a vinda inteira. Mas agora sou pai e meu dever é proteger meu filho.

domingo, 30 de março de 2025

V SiGELMA

 Novos artigos de segunda #25

V SiGELMA

José Neres 



A internet é muitas vezes acusada de afastar as pessoas. No entanto, na época da Pandemia da COVID-19, muitas pessoas utilizaram a Grande Rede de Computadores como forma de não se afastarem totalmente dos entes queridos e também, em muitos casos, construíram novos laços de amizade.

Foi justamente nesse contexto pandêmico que surgiu o Grupo de Estudos em Literatura Maranhense - Gelma, idealizado pelo professor doutor Dino Cavalcante. O objetivo maior desse Grupo de Estudos é congregar pesquisadores que se interessam por algum aspecto da literatura maranhense e se disponham a dedicar um pouco de seu tempo para ler e discutir textos literários e teóricos que se relacionem com o tema gerador, ou seja, com a literatura maranhense.

O Grupo se reúne semanalmente, às quintas-feiras, de forma virtual, e todo final de mês recebe algum escritor ou escritora para falar sobre sua produção literária. Além disso, o Grupo vem trazendo à luz diversas edições de trabalhos fundamentais da literatura maranhense, tendo também publicado obras de cunho teórico, fruto das discussões semanais, sempre de forma acessível e gratuita.

Outra vertente do Gelma está relacionada com a realização - uma vez por ano - de um Simpósio que reúne pesquisadores de diversas vertentes teóricas em torno dos estudos literários. Esse simpósio, denominado de SiGELMA chegou, agora em 2025, a sua quinta edição e reuniu um significativo número de estudiosos que apresentaram seus trabalhos no intervalo de tempo compreendido entre os dias 26 e 28 do mês de março do corrente ano.

Na primeira noite, o público foi brindado com uma mesa-redonda composta pelos professores doutores Naiara Sales, Weberson Grizoste e Darville Lizis, que dissertaram sobre autores como Laura Rosa, Gonçalves e Astolfo Marques, respectivamente, sob a coordenação de Dino Cavalcante 

No já tradicional quadro do Café Literário, os inscritos tiveram a oportunidade de dialogar com a produção literária e com os conhecimentos de autores como Rafael Campos Quevedo, Natan Campos, Adriana Gama e Franck Santos que, dialogaram com o público e com as coordenadoras Linda Barros e Maria Regina Coelho. 

No segundo dia do evento, houve também palestras com o escritor, filósofo e advogado Rogério Rocha que, ao lado da professora Renata Barcellos, falou sobre a questão dos cânones literários sob uma perspectiva não apenas da universidade, mas também a partir dos gostos particulares. A professora Lanna Oliveira coordenou o encontro com o professor Mauro Cézar Vieira, que falou sobre a questão da escrita de si no âmbito da literatura maranhense. No mesmo dia, houve também uma palestra do professor e escritor Dino Cavalcante sobre a necessidade de uma discussão mais teórica sobre a história da literatura maranhense. Essa intervenção foi coordenada pela professora doutora Francimary Macedo. 

Durante o evento houve também a apresentação de quase quatro dezenas de comunicações orais de pesquisadores que versaram sobre diversos temas. Os trabalhos foram muito bem conduzidos pela professora Helena Mendes e pela doutora Natércia Garrido. Brevemente, os interessados poderão ler os trabalhos apresentados nos Anais de Congresso que sempre são disponibilizados aos interessados.

Na conferência de encerramento, as pessoas presentes tiveram o prazer de ouvir as palavras do renomado professor, escritor e crítico literário Rinaldo de Fernandes, que traçou um panorama da contística contemporânea produzida no Nordeste brasileiro nas últimas décadas. Uma palestra memorável.

Não há dúvida de que o SiGELMA já faz parte do calendário científico do Maranhão. Ele é uma prova de que a internet, quando bem utilizada, pode tornar-se um excelente instrumento para a divulgação dos estudos científicos realizados pelos pesquisadores maranhenses. 

Card de divulgação do evento 




quarta-feira, 26 de março de 2025

SOBRE PRODUÇÃO TEXTUAL

 Caros alunos e alunas,

Preparamos um série com quatro vídeos sobre produção textual.

Apresentamos aqui o primeiro. A cada semana acrescentarmos outro.

Bom proveito!




segunda-feira, 24 de março de 2025

CINCO BONS LIVROS

 Novos artigos de segunda #24


CINCO BONS LIVROS QUE LI RECENTEMENTE 

José Neres 


Ler é uma atividade que exige algum esforço, mas que sempre traz muitos momentos de prazer para quem faz da leitura uma companheira sempre prestes a ajudar nas tarefas do dia a dia.

Gosto de ler e não considero um sacrifício ficar diante de um livro durante horas e passar a conviver com personagens imaginadas por outras mentes e que passam a habitar meu mundo mal começo a passar os olhos pelas páginas de um livro.

Há livros que lemos apenas para passar o tempo, mas há alguns deles que nos agarram pelo pescoço e nos obrigam a pensar neles mesmo depois de concluída a leitura da última página. 

Vejamos a seguir uma pequena lista de cincos livros que li recentemente e que me fizeram repensar alguns conceitos e ideias sobre a literatura.

Ei-los:

1 - O homem invisível (H. G. Wells). Não é à toa que H. G. Wells é um dos nomes mais importantes da literatura universal. Em uma linguagem ágil e envolvente, ele consegue prender o leitor em uma narrativa que traz à tona diversos problemas e angústias de uma personagem complexa e cheia de nuances. Nesse livro, fica patente como um ser humano pode transformar-se em alguém capaz de tudo para alcançar seus objetivos.


2 - Os engenheiros do caos (Giuliano Da Empoli). Vi uma recomendação do filósofo e amigo Rogério Rocha e não me arrependi de ler cada página dessa obra que tenta destrinchar os meandros de uma arquitetura invisível, mas que está bem diante de nós e que pode alterar a vida de toda uma sociedade por gerações. Os algoritmos estão escondidos em cada clique que damos e tecem uma rede de oportunidades para uns e de intrigas para outros. 


3 - Carolina (Sirlene Barbosa e João Pinheiro). Quem me conhece sabe que sou apaixonado pela obra de Carolina Maria de Jesus. Considero Quarto de despejo um livro capaz de alterar a rota de leitura de qualquer amante das letras. Então não pude perder a oportunidade de acompanhar a vida e a produção literária dessa escritora narradas em quadrinhos. Uma leitura fluida e agradável da primeira à última página. 



4 - A Casa (Natércia Campos). Gosto muito de ler livros com narradores inusitados. Mas confesso que há algumas obras que eu não leria se não fosse uma indicação ou imposição de alguém em que confio integralmente na capacidade de ler além das aparências. Li, então, esse pequeno romance por indicação da professora Márcia Manir e aos poucos fui levado pela narrativa praticamente mítica de uma casa que narra para os leitores uma história inusitada, que conta seus segredos, que enternece, causa admiração e assusta ao mesmo tempo.


5 - A mulher que sequestrou Chico Buarque (Rinaldo de Fernandes). Nesse recente lançamento do professor, prosador e crítico maranhense Rinaldo de Fernandes o leitor de repente se vê envolvido por narrativas curtas que giram em torno de personagens problemáticas e de histórias que mesclam os diversos sentimentos que unem/separam as pessoas e as colocam em situações limítrofes quando se deparam com a obrigatoriedade de difíceis escolhas.



Bem. Aqui estão algumas das leituras que me fizeram refletir um pouco sobre essa agradável tarefa diária de mergulhar nas páginas de um bom livro.



sábado, 22 de março de 2025

CONTO: FORMAS DE PAGAMENTO

FORMAS DE PAGAMENTO 

José Neres 

Imagem criada com auxílio de Inteligência artificial 


Sábado...

Cynthya queria uma calça nova para fazer figura diante das colegas da escola...

Henzo desejava um tênis novo para jogar futsal com a galera. Não dava para ir de novo com o antigo.

Era ainda metade do mês e dona Clara sabia que a pensão do ex-marido só cairia dali a quinze dias. Gostava de ver os filhos felizes.

Seu Francisco, dono do mercadinho queria comprovar se o corpo da vizinha era realmente tão apetitoso quanto seu Manuel da padaria comentava. Quem sabe assim conseguiria recuperar um pouco dos fiados feitos por dona Clara...

Segunda-feira...

Cynthya estreava a calça nova na escola...

Henzo marcava um golaço com o novo tênis de futsal...

Dona Clara estava feliz com a alegria dos filhos...

Seu Francisco abriu o mercadinho cantarolando...

Terça-feira:

A família não teve pão, leite e margarina para o café da manhã. 

Seu Manuel agora aceitava apenas pagamento em dinheiro, crédito, débito ou Pix.


domingo, 16 de março de 2025

VELAS NÁUFRAGAS

Novos artigos de segunda #23

 


UM LIVRO DE DIEGO MENDES SOUSA

(José Neres)

 

Algumas das inúmeras coisas boas que a poesia pode oferecer aos leitores é permitir que nossa mente possa passear livremente por lugares onde nossos pés provavelmente jamais trilharão; deixar que possamos sair de nossa realidade e momentaneamente viver em uma outra época ou lugar; possibilitar ao leitor conviver com pessoas que talvez nunca conheça pessoalmente; fazer amigos que vão além do papel e que sobrevivem à própria passagem do tempo.

É com a sensação de conversar animadamente com um amigo em uma mesa de bar ou restaurante que li o livro Velas Náufragas (Penalux, 2019, 100 páginas), do jovem poeta piauiense Diego Mendes Sousa. O livro é graficamente impecável, como costuma acontecer nas obras publicadas por essa editora. Porém jamais podemos ficar apenas na admiração da capa de um livro. É preciso lê-lo página a página e sentir suas palavras correndo por nossas veias.

Já havia lido diversos textos esparsos desse escritor, mas creio que é sempre importante entrar em contato com os trabalhos completos dos autores, para conhecer um pouco mais seu estilo, suas motivações literárias e suas nuances estéticas.

Logo nos primeiros contatos com a obra de Diego Mendes Sousa é possível notar que ele é dono de uma dicção poética própria que, embora seja visivelmente influenciada por suas leituras, mantém sua independência estilística e preza pela construção de imagens poéticas que envolvam o leitor em uma aura de encantamento. Trata-se de um poeta que tem consciência da obra que está construindo e que não se contenta em repetir velhas fórmulas poéticas, mas que também não se sente à vontade para romper com todos os paradigmas, já que estes serviram como base para sua formação poética. Nota-se nele um respeito pelas tradições e um apelo pelas inovações. Uma atitude não elimina a outra.

A natureza, as personalidades e os demais “seres aladinos” que compõem a paisagem da “alma litorânea” e que inundam o olhar do eu lírico a ponto de extravasar em forma de poema recepcionam os leitores desde as primeiras páginas do livro. Esse emaranhando de imagens interiores funciona como “frames” de experiências que foram captadas ao longo de toda uma existência e que se encontram represadas em forma de palavras que buscam reproduzir memórias que ainda estão em plena construção, mas que já demonstram solidez.

Esses “frames” poéticos se prolongam nas páginas seguintes e acabam funcionando como pontos de ligação entre o que foi aparentemente vivenciado pelo eu lírico e que acabou marcando toda a sua existência como Ser físico e Ser poético. De alguma forma, os dois se completam e se amalgamam na construção dos versos e dos poemas.

Consciente de que “a memória é uma viagem” (pág. 22), de que “vagar / é uma errância inesperada” (págs. 23 e 25) e de que “todos os olhos estão esquecidos nos vícios / redimidos dos desejos” (pág. 25), o eu lírico utiliza os versos para trazer para perto de si toda uma multidão de pessoas, de fatos e de imagens que lhes são caros, raros e essenciais.  De modo geral, Velas náufragas é um livro que dialoga diretamente como aquilo que é essencial para a riqueza de uma existência: o rincão natal, os detalhes quase imperceptíveis, as pessoas, a memória, a natureza e a própria poesia.

Ao folhear o livro de Diego Mendes Sousa é possível sentir os diversos cheiros que derivam do mar, é possível seguir os rastros das tartarugas, dos siris e dos caranguejos, banhar-se na luz do luar e sentir os ventos que acariciam nossa face... tudo isso ao ritmo do Boi de São João, do “balé de Parnaíba” e dos cânticos dos seres encantados que povoam nosso imaginário. De “frame” em “frame”, o autor consegue compor um belo quadro poético, mas não um quadro estático e frio, mas sim um mosaico vibrante e vívido no qual a cultura erudita e a popular se abraçam e interagem de forma harmoniosa, pura e bela.

Para concluir, nada melhor do que reproduzir alguns versos desse jovem autor que tanto já ofereceu para a literatura brasileira e que tanto ainda tem a ofertar para seus leitores. O poema “Caranguejos e Siris” (pág. 48) sintetiza muito bem o estilo e a sensibilidade poética desse amante das letras e das palavras.

CARANGUEJOS E SIRIS


Hoje sou muitos, sou vário,
sou os múltiplos, sobremaneira um,
o que vai morrer no deserto,
com andar de caranguejo, às pressas.
Talvez sem rumo, isso sempre,
para todos os lados do meu único mundo,
meu singular mundo, rasgado por profecias
e magias, essa cabala inacabada.

Nossos agradecimentos ao poeta que nos permitiu caminhar sobre as águas de sua terra usando apenas o poder de suas palavras e de sua criatividade. Essas Velas náufragas não foram confeccionadas para afundar, mas sim para a salvação dos amantes da boa poesia contemporânea. 

quarta-feira, 12 de março de 2025

CONTO: TORCEDORA

 

Imagem criada com auxílio de Inteligência artificial 

TORCEDORA 

(José Neres)


Ele apenas esboçou um sorriso cínico quando eu lhe disse que não queria mais nada com ele, pois estava apaixonada por outra pessoa.

Depois ficou sério e perguntou quem era o safado que estava me comendo?

Foi nessa hora que o desespero se apoderou de mim. Quando ele sorria, a situação nunca era boa.

“É o Mosquinha?

“ Não! Tá ficando doido. Mosquinha sempre foi como um irmão para mim…”

“Então é o Pau de Aço…”

“Jamais… ele é. Nojento… Meu Deus!!!...”

“Então só pode ser o Serginho…”

“Não. Não é. Não é ninguém de seu bando… e esses três faz um tempão que nem vejo. Devem estar até presos. Desapareceram e…”

Nesse momento, ele voltou a sorrir, mas dessa vez com sangue injetado nos olhos.

“Porra, sua puta, matei três dos melhores homens que já tive por tua causa e agora vem me dizer que nenhum deles te comeu e que está apaixonada por outro. Quem é? Diz logo. Que vou matar esse filha da puta e depois volto para acertar as contas contigo.”

Nunca tinha visto ele daquele jeito. Estava transtornado. Se eu não contasse, ele me mataria ali mesmo. Acabei confessando.

“É teu pai. Estou ficando com ele. Já ficamos três vezes…”

“Cala tua boca… vou te amarrar. Saio e mato o velho. Depois volto e acerto as contas contigo.”

Só tive tempo de perguntar: “Vai matar teu próprio pai? Tá doido?

“Para quem matou no mesmo dia três irmãos da quebrada, matar um pai escroto é fichinha.”

Saiu. 

Não sei por quanto fiquei ali. Amarrada. Mas, para quem espera, qualquer minuto vira eternidade.

Voltou.

Aquele sorriso cínico não mais estampava seu rosto. 

“Pronto. Acabou. O velho já era. Mas foi macho. Morreu sem confessar nada. Esquece. Acabou. Agora você é só minha e pronto. Mas não me traia mais, pois, da próxima vez…”

Me desamarrou e eu caí a seus pés chorando.

“Para de chorar, porra! Para de chorar, vai tomar um banho. Bota uma roupa transparente e volta cá. O jogo está para começar. Se meu time ganhar, vamos comemorar e esquecer toda essa merda. Mas, se perder…”

Não precisou completar. Tomei o melhor banho da minha vida. Vesti o que ele pediu e me tornei a torcedora mais fiel que existe. 

Ele nunca mais tocou no assunto. Apenas no segundo domingo de agosto é que amanhece meio irritado, mas na hora do jogo geralmente se acalma.


sexta-feira, 28 de fevereiro de 2025

UM CONTO DE CARNAVAL

 



DOMINGO GORDO DE CARNAVAL 

José Neres 


Foi em um domingo gordo de carnaval que conheci Heleninha. Não sei da parte dela, mas da minha foi amor à primeira vista.

Estava perto da meia-noite quando eu a avistei dançando atrás de um trio elétrico. Tocava a música do Jegue Folia. Naquele tempo ainda se podia acompanhar os cantores daqui em pleno carnaval. No São João também. E havia as festas de rua. Quem dava as cartas era a tradição. Nossos blocos passavam e todos ficavam boquiabertos. Era impossível ficar parado diante daquele som envolvente

Eram outros tempos. Existia até uma passarela para os desfiles das brincadeiras. Mataram nosso carnaval! 

Foi justamente nesse momento que vi Heleninha. Chamou-me atenção primeiro aquele corpo bem torneado. Visivelmente fruto de horas e mais horas de malhação em uma academia. Depois observei o sorriso, os olhos, os cabelos… tudo ali era perfeito. 

Eu estava parado. Deveria entrar na passarela logo depois que aquela brincadeira passasse. Quase sempre eu ensaiava uns passinhos de dança antes de chegar a minha vez de me destacar no meio de meus colegas. Porém, ao ver aquela menina, senti minhas pernas bambas, a boca seca, as mãos trêmulas e o coração acelerado. Não conseguia parar de olhá-la.

Ela veio se aproximando de mim. Parecia que me encarava. Não deu para ouvir, mas tenho quase certeza de que quando se aproximou de mim ela disse: “Gostei de sua fantasia…”

E passou rebolativa.

Era minha vez de entrar na passarela. Tinha que seguir um ritmo previamente ensaiado para não atrapalhar as pessoas do bloco, escola de samba ou brincadeira anterior. Não liguei para isso e acelerei meus passos. 

Ao chegar perto dela, perguntei seu nome quase tocando os lábios em sua orelha esquerda. “Heleninha”, foi a resposta. “Gostei de você… sua fantasia é bem criativa! Topa ir para um lugar mais sossegado?” 

Não pensei duas vezes, deixei de lado o instrumento que estava em minha mão, envolvi sua cintura em um abraço e tirei-a da multidão. Ela não caminhava, sambava em um ritmo alucinante. O som da música se tornava mais distante. As pessoas iam rareando e um paraíso se anunciava para mim…

Longe dos olhares, o local estava deserto e mal iluminado. Tirar a roupa dela foi uma tarefa fácil. Difícil foi me livrar da minha. Heleninha chorou de prazer. Eu também. 

“Quero te encontrar de novo amanhã aqui. Topa? No mesmo lugar. Use a mesma fantasia. Não esqueça. Beijos”. E saiu caminhando sozinha, quase correndo, sem olhar para trás, enquanto eu tentava encontrar minha roupa, para me vestir e acompanhá-la. 

Desapareceu. 

Voltei para o ponto onde estava quando a vi pela primeira vez. Nada. Encontrei meus companheiros. Ninguém me perguntou onde eu estivera. Daqui a pouco seria hora de entrarmos novamente na passarela…

De manhã, voltei para casa. Pensando nela, me masturbei por quase uma hora, antes de adormecer. 

Na noite seguinte. Com a mesma roupa, esperei-a no mesmo lugar. Ela não apareceu.

Nunca mais apareceu…

Já se passaram muitos carnavais e nunca mais a vi. Na verdade nem sei o nome dela. Nem sei se realmente estive com ela. Nem sei se ela existe ou existiu. Minha única certeza foi o que aconteceu na minha casa antes de eu ter sido derrotado pelo sono.

Mas, por via das dúvidas, mesmo tendo sido demitido logo depois daquela noite, por haver desaparecido do serviço, todo domingo gordo de carnaval, abro minha gaveta, separo o antigo uniforme de agente da limpeza pública, pego uma vassoura e sigo esperançoso, para algum local onde haja festa de carnaval.

Quem sabe um dia desses Heleninha apareça e reconheça minha fantasia… Nossa fantasia…


domingo, 23 de fevereiro de 2025

LEITURAS COM MÚSICA AO FUNDO

 Artigo de segunda #22

LEITURAS COM MÚSICA AO FUNDO

(José Neres)




Pretend you’re happy when you’re blue
It isn't hard to do… (Pretend - Nat King Cole)


Não tem jeito! Toda vez que cai em minhas mãos um livro no qual o autor transcreve ou cita alguma canção teimo em fazer uma pausa na leitura para ouvir a referida música. 

Como os bons autores geralmente planejam suas obras e constroem suas personagens com muito cuidado, acabo acreditando que aquelas músicas citadas me oferecem uma importante oportunidade de me aproximar do narrador, da personagem, da época e do ambiente no qual se passa a história. É um momento propício também para entrar em contato com alguns compositores e intérpretes até então pouco ouvidos ou mesmo desconhecidos para mim.

Coincidentemente, os dois romances que li semana passada estão eivados de momentos musicais, oferecendo-me uma playlist de extremo bom gosto e que muito acrescentou a meus parcos conhecimentos sobre música 

O primeiro livro foi “Era uma vez no Pantanal: uma saga transfronteiriça”, (Biografary, 2024, 123 páginas), de Gilberto Luiz Alves. Trata-se de uma história que atravessa grande parte do século XX e que tem seu início cronológico justamente no dia 1⁰ de janeiro de 1900. (Se quiser saber mais sobre esse livro, clique aqui)

O protagonista - Juanito Balbuena - é um homem bom e sofrido que tem suas raízes históricas fincadas entre o Paraguai e Porto Murtinho, que hoje faz parte de Mato Grosso do Sul. Durante suas andanças, Juanito Balbuena trabalhou em lugares como Corumbá, região dos Paiaguás e Nhecolândia. Quase sempre afastado da família, o rapaz leva em sua bagagem os poucos pertences que possui, a vontade de vencer na vida, muita saudade, um violão e as composições com as quais consola um pouco de suas dores e a de muitas pessoas que cruzam por seu caminho. 

Logo na página 27 do livro, enquanto a personagem acompanhavam as procissões em homenagem a Santo Antônio Cuiabano, deparei-me com os seguintes versos:

Deus te salve João 
Batista Sagrado,
O teu nascimento 
Nos tem alegrado.

Não resisti. Fui procurar algum registro fonográfico na internet e encontrei uma bela interpretação da música que, confesso, não conhecia.

As músicas acompanham a trajetória do protagonista e servem para acalmar e enternecer os personagens do romance. Mais adiante, na página 71, encontrei a letra de uma música que há muito eu não ouvia. Corri para matar a saudade de Cálix Bento, que fez muito sucesso na bela voz de Milton Nascimento.

Oh Deus, salve o oratório 
Oh Deus salve o oratório 
Onde Deus fez a morada, oiá, meu Deus
O de Deus fez a morada, oiá

O outro livro impregnado de música e de musicalidade foi, Sul da fronteira, oeste do sol (Alfaguara, 2020, 230 páginas), de Haruki Murakami. 

Impossível não se impressionar com a simplicidade da trama da narrativa que envolve a paixão juvenil de Shimamoto e Hajime. Impossível também não parar para ouvir a melodiosa voz de Nat King Cole interpretando “Pretend” ou “South of the border”, parte da trilha sonora que embala os encontros e desencontros do casal. 

Ao longo do livro, o leitor por se deliciar com a sugestão para ouvir a comovente “Star-Crossed Lovers”, que foi imortalizada na interpretação de Duke Ellington. O autor também nos faz um convite para passar pelas composições de Liszt e por outras preciosas peças da música universal.

Esses dois livros apresentam muitas coincidências entre si. Em ambos os casos, as personagens vêm ao mundo em datas que marcam o início de novos ciclos, levam uma vida comum e cheia de perdas, são marcadas por músicas, deixam um ar de mistério em suas trajetórias e se deslocam constantemente em busca de algo que talvez nem elas mesmas sejam capaz de compreender. 

A literatura e a música são capazes de ligar pessoas tão fisicamente distantes entre si e juntá-las inclusive pelas diferenças e singularidades específicas de suas culturas e lugaridades. Às vezes, tudo o que importa é o ritmo que a vida nos imprime nas páginas de nossas vidas.

Vale a pena sentir a musicalidade com que os autores embalam suas narrativas. No final, todos ganham 




NOSSA ESQUECIDA LITERATURA

UMA BREVE CONVERSA DE CORREDOR (José Neres) Imagem criada com auxílio de Inteligência artificial  Aproximei-me silenciosamente. O assunto me...