Novos artigos de segunda #29
Hoje, trago de volta um artigo publicado no jornal 📰 O Estado do Maranhão em 2017.
GULLAR PARA CRIANÇAS DE TODAS AS IDADES
José Neres
Quando faleceu, no final do fatídico ano de 2016, Ferreira Gullar (1930-2016) foi homenageado de muitas formas: artigos em jornais e revistas, programas de televisão e rádio, vídeos e depoimentos na internet, recitais de poemas, palestras, discursos e diversos outros tipos de aclamações (todas merecidíssimas) lembraram que o mundo das letras havia perdido um de seus mais completos intelectuais e que a cultura letrada brasileira estava de luto.
Os noticiários chamaram a atenção para a multiplicidade de campos de conhecimentos que eram frequentados por Ferreira Gullar, afinal, por aproximadamente meio século ele vinha se destacando como poeta, cronista, tradutor, roteirista, crítico de arte, letrista, teatrólogo e memorialista. Mas, em meio a tantos lamentos, nuances e qualidades, poucas pessoas se lembraram de uma faceta menos conhecida desse grande escritor maranhense: suas incursões pelo mundo da literatura infanto-juvenil.
Embora não tivessem o mesmo impacto inovador de livros como Poema Sujo, Dentro da Noite Veloz e A Luta Corporal, as obras de Gullar voltadas para as crianças têm também seus encantos a trazem as marcas típicas de um cultor das palavras que se propôs a escrever para um público que ainda não tinha desenvoltura suficiente para decifrar refinadas metáforas e destrinçar inusitados volteios sintáticos, mas que merecia entrar em contato com as produções dos grandes autores de nossa língua.
Importante notar que, além de Ferreira Gullar, outros autores da primeira linha da literatura brasileira também utilizaram parte do tempo e do talento para tornar o universo particular das crianças mais belo, artístico e encantado, como é o caso de Clarice Lispector (A Mulher que Matou os Peixes), Cecília Meireles (O Isto ou Aquilo), Mário Quintana (Sapato Florido), Jorge Amado (O Gato Malhado e a Andorinha Sinhá), Graciliano Ramos (A Terra dos Meninos Pelados) e Josué Montello (A Cabeça de Ouro), dentre outros; sem contar também os talentosos escritores que se notabilizaram justamente por uma carreira dedicada quase que exclusivamente para a produção de obras destinadas ao público infantil e/ou juvenil. Nesse círculo de autores é impossível olvidar nomes como Pedro Bandeira, Lygia Bojunga Nunes, Ruth Rocha, Marcos Rey, Ana Maria Machado e Ziraldo.
Mas no caso de Ferreira Gullar é diferente. Aparentemente suas obras classificadas como infantis ou infanto-juvenis foram escritas mais por diletantismo ou por desejo de brincar com as palavras do que por necessidade de inserir-se comercialmente nesse mercado tido como promissor e bastante rentável.
O primeiro trabalho infanto-juvenil publicado por Ferreira Gullar, em 2000, foi Um Gato Chamado Gatinho, um livro inspirado nas travessuras e manias do felino de estimação do poeta. O próprio Gullar explicou que “os poemas foram nascendo, sem pressa, motivados por cada nova descoberta que eu fazia a respeito do meu gato”, e adverte que o objetivo dos textos era serem “engraçados, agradáveis e divertidos”. Na época da publicação, o livro foi ilustrado pela artista Ângela Lago, mas aparece também no volume Poesia Completa, Teatro e Prosa, publicado em 2008 pela Editora Nova Aguilar, contudo apenas os textos, sem as ilustrações.
Os poemas do livro, todos leves e escritos em uma linguagem simples, mas carregada de lirismo, é ideal para jovens e adultos que sentem afeição por gatos. Em cada poema o leitor vai se divertindo com as peripécias de um felino que acorda seu dono, briga com um gato das vizinhanças, tenta livrar-se de suas pulgas e até abocanha um peru de Natal que estava à mesa. Os versos trazem as marcas de um poeta atento à escolha lexical, às rimas e ao ritmo, mas que, principalmente, estava preocupado com a leveza do texto e em trabalhar a fanopeias necessárias à visualização das muitas aventuras do gato-protagonista.
Cinco anos após chegar às livrarias seu primeiro livro infanto-juvenil, Ferreira Gullar publicou Dr. Urubu e Outras Fábulas. Novamente, em poemas curtos e escritos em uma linguagem bastante acessível, o poeta leva para ao mundo da fantasia vários animais – papagaio, formiga, macaco, abelha, cachorro, aranha, urubu, etc. – e tenta mostrar que é possível uma convivência harmônica entre os seres humanos e os considerados animais irracionais.
Em cada poema um animal entra em cena, apresenta algumas de suas características básicas, às vezes conversa com uma criança e, sutilmente, chama atenção para a importância de todos para o equilíbrio do ecossistema. Mesmo escrevendo fábulas, o autor não se sentiu obrigação de recorrer à chamada moral da história no final de cada texto, mas deixa a possibilidade de que cada leitor tire suas conclusões a respeito do fato de que preciso educar olhar e a sensibilidade dos jovens para que haja respeito pela natureza, pois o ser humano não deve considerar-se mais importante que os demais componentes da natureza.
Apesar de haver escrito poucas obras dirigidas ao público infantil, Ferreira Gullar também deixou as marcas de seu talento com as palavras nesse nicho pouco explorado de sua produção literária. E, mesmo sendo escritos para serem lidos por crianças, esses poemas gullarianos também podem dizer muito às pessoas de outras faixas etárias, afinal de contas a boa obra de arte não conhece os limites de idade.
O Urubu
(Ferreira Gullar)
a coisa está preta
A falta de chuva
matou a colheita
– queixou-se a Raposa. –
A fome é geral.
Até já me sinto mal!
E o Urubu, muito prosa,
mal disfarçando a cobiça:
– Tudo no mundo depende
do nosso ponto de vista...
Não acha, amiga ardilosa?
Para quem come carniça,
a coisa agora está branca,
ou melhor, está cor-de-rosa!